26 jan

A Gota d´água, por Margi Moss

No momento em que escrevo, já se passaram 166 dias sem cair uma gota de chuva no meu quintal no Lago Sul, Brasília. A grama está totalmente ressecada, as folhas das árvores (as que ainda têm folhas) encolheram e a falta dos insetos que proliferam com as chuvas está deixando os pássaros esfomeados.

Muitos brasileiros não sabem o que é passar por uma experiência como essa, e muitos outros – especialmente no Nordeste e no Centro-Oeste – convivem periodicamente ou permanentemente com a falta de água.

Fiquei imaginando como seria se pegássemos duas famílias, uma acostumada com chuva regular e outra acostumada à carência de água, e fizéssemos uma troca de moradias, mesmo por uma semaninha.

Na comédia Trocando as Bolas (Trading Places em inglês, 1983), dois irmãos ricos apostam e tramam a troca de vida entre um colega investidor da bolsa de valores e um malandro sem teto. A história é um pouco ingênua, mas a idéia é interessante: o ladrão esperto (Eddie Murphy) se adapta facilmente ao upgrade para o mundo privilegiado, enquanto o ex-rico/novo-pobre (Dan Akroyd) completamente arrasado, perde todos os amigos e a noiva, e mal sabe sobreviver.

No filme, os dois mudam de vida em termos de ascensão social, moradia, acesso a clubes privados etc.  E se, além disso, acrescentássemos à história um elemento absolutamente crucial para a sobrevivência, como a água? Se pegássemos uma família que reside numa mansão em um bairro nobre de São Paulo e trocássemos sua moradia pela de outra família, pobre, que mora em um casebre de pau-a-pique no sertão paraibano?

Assim como o ladrão esperto do filme (representado pelo ator Eddie Murphy), a família da Paraíba instalada em São Paulo logo aprenderia a conviver com água jorrando de um chuveiro com a força de uma cachoeira; com água esguichando da torneira da pia; água abundante usada até para lavar calçadas, carros e encher piscinas. A família logo concluiria que não vale a pena o esforço monumental de girar a torneira para fechá-la em seguida ao lavar a louça: mais fácil é deixar aquela água limpa escoando pelo ralo.  É água, para se “servir à vontade”.

E lá no sertão, como seria a adaptação da família paulistana? De todos  os desconfortos que sentirá, a falta de água é o que mais incomodaria.  Buscá-la no lombo de burro a quilômetros da casa, ou trazê-la de volta em velhos galões enferrujados acomodados em cima da cabeça, seria uma experiência traumática.  E qual seria a reação ao ver que a única água disponível no açude distante é barrenta? E que o mesmo açude é usado por outras pessoas para lavarem roupas e panelas? E também por vacas, bodes e cachorros – enfim, todos os bichos – para dessedentar-se?  Diante disso, o zelo para curtir um banho de meia-hora, ou desperdiçar litros de água para lavar os pratos, ou limpar a carroça, logo seria cortado na raiz!  A água seria muito mais valorizada e todos iam cuidar para não desperdiçar uma gota sequer.  (E nem vou me estender no assunto dos possíveis casos de diarreia em todos os membros da família paulistana…)

Segundo a ONU, o consumo diário ideal por pessoa é de 110 litros de água. Em São Paulo, a média é de 300 litros por dia, volume inconcebível para um morador do sertão, onde cada gole é buscado com suor.

Em certas regiões da África, o consumo per capita beira míseros 4 litros por dia, volume igualmente inconcebível segundo nossos padrões.  E como tudo é exagero na capital do país, uma pesquisa de 2009 aponta a região do Lago Sul de Brasília como o maior consumidor do mundo:  1.000 litros por pessoa por dia!

Lá, a maioria das residências tem piscina.  E, acredite, muitas não têm filtro. Semanalmente um piscineiro contratado faz o trabalho de retirar as folhas caídas, bombear para fora 5.000 litros (ou mais) de água e colocar o cloro. Logo em seguida, enche novamente com água tratada da CAESB. Não bastasse isso, alguns moradores insistem em manter seus jardins floridos e com a grama verde, mesmo nos longos meses da seca.

Como existem crianças que não sabem que o leite sai da vaca e que as laranjas nascem em árvores, também somos milhões que não têm idéia de onde vem a água que usamos diariamente.  De algum rio, uma represa, um aquífero, da chuva?

Se não sabemos, ou não nos importamos com a proveniência da água que aparece milagrosamente, pura e cristalina, quando abrimos a torneira, como iremos nos importar com o seu destino depois que a utilizamos? A ironia é que justamente o elemento de que mais precisamos em estado de pureza para beber e continuar vivos é também o que usamos para limpar nossos detritos e sujeiras.

No Brasil, temos a sorte de viver num país de água, água fornecida gratuitamente pelas chuvas abundantes que enchem o subsolo, os rios, lagos e reservatórios. Mas, no futuro? Qual será o impacto do desmatamento da Amazônia e das mudanças climáticas no regime de chuvas? Mesmo que não moremos no sertão, está na hora de cuidarmos melhor de cada gota.

As palavras sucintas do navegador neozelandês Sir Peter Blake, assassinado por ladrões a bordo de seu veleiro em Macapá, em 2001, são claras:

Good water, good life

Bad water, bad life

No water, no life.

Água boa, vida boa

Água ruim, vida ruim

Água nenhuma, vida nenhuma

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