07 mar

As Mulheres de Rosa – Notas sobre o feminino em Grande Sertão: Veredas

Das muitas coisas já demonstradas na vasta obra de Guimarães Rosa é o quanto a sua escritura tem de feminino: a tentativa incessante de narrar um fato tal como se deu, mas sempre se voltando sobre ele, jamais encontrando um dizer definitivo. No lastro do paradigma de Penélope, que tece no tear por todo o dia e à noite destece, ao tempo em que confabula com as memórias do marido Odisseu, o autor de Sagarana desfia toda a exuberância de sua narrativa. E esta é uma marca características de todas as suas grandes personagens, constantemente afrontadas pela dúvida e tomadas de uma quase devastadora saudade.

Enquanto querença, no dicionário, reporta a um apego instintivo de um animal por um lugar, Rosa joga com a palavra querência, que, além de sugerir o sentido corrente de querer, expressa uma saudade profunda de algo que nunca se conheceu. E é esta saudade que lança suas personagens para o mundo, desejosas de algo que não sabem o quê, mas que na medida mesma em que se movem é que se dá a conhecer e possibilita a transcendência.
A dúvida é antes de tudo vontade de ser – também vontade de saber, mas na medida em que saber e ser se tornem sinônimos. A dúvida é querência, é saudade – e com isso, paradoxalmente, é também uma certeza: certeza de se pôr a caminho, à procura, de se relacionar com os outros no mundo: se modificar.
Arrebatadas por esses afetos, as personagens de Rosa se movem, portanto, num universo em que a fundação de si e a completude do ser estão sempre na relação com o outro. As grandes dúvidas e a querência avassaladora são, no fim das contas, expressões de uma outra característica feminina por excelência: a abertura para o outro, o território da alteridade.
A grande personagem-dúvida da literatura rosiana é, indiscutivelmente, Riobaldo. Tanto que, sendo o mal o foco do questionamento em Grande Sertão: Veredas, a maior parte do tempo o que está no centro da narrativa não é o mal, mas o próprio questionamento – a dúvida, portanto. Isso se torna mais contundente quanto mais vemos Diadorim, em sentido contrário: Diadorim é todo certeza, seguindo o mandado de ódio do pai – e de tanta certeza é que não pode se salvar, identificado com um projeto de vingança que é razão mesma da sua existência.
…Diadorim dizia. – Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros não forem bem acabados… E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado. Ódio com paciência; o senhor sabe?
A menina que não teve mãe e foi tornada homem pelo peso do nome do pai deve contar com as armas e os braços de homens-feras num universo em que o combate por uma justiça ambígua é o que lhe foi autorizado desejar. Diadorim é portadora de uma androgenia que, no plano ideal, remete ao mito do tempo em que os homens eram completos, tendo em si o feminino e o masculino, mas que no plano prático impõe um papel para o qual não há outras formas de desempenhar, redundando na anulação de um corpo que deseja o amigo Riobaldo. Diadorim nunca aprendeu o que era o medo, em nenhum momento, mínimo que fosse, e por isso não podia duvidar.
A recorrência do rio Urucúia, tão amado por Riobaldo, e de pequenos charcos durante toda a narrativa é o que resguarda o lugar do feminino num universo em que o narrador não deixa de enfatizar que um dos aspecto mais marcantes do mal é o exílio das mulheres do espaço das relações. O exílio do feminino é a morte da alteridade, do sentido que ultrapassa aquilo que aprisiona e mata desde a vivência cotidiana.
E por não podermos mais nos demorar, recortamos aqui dois trechos complementares. O primeiro reporta à travessia do Liso do Sussuarão, uma metáfora do inferno, do tártaro:
Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, no descampante. Acabou o sapé brabo do chapadão. A gente olhava para trás. Daí, o sol não deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo. Um gavião-andorim: foi o fim de pássaro que a gente divulgou. Achante, pois, se estava naquela coisa – taperão de tudo, fofo ocado, arrevesso. Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo dela, confinante? O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta – feito cabeleira sem cabeça. As-exalastravam a distância, adiante, um amarelo vapor. E fogo começou a entrar, com ar, nos pobre peitos da gente (…) As chuvas já estavam esquecidas, e o miôlo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião – areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás… Se ia, o pesadêlo. Pesadêlo mesmo, de delírios. Os cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum poço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando.
E por fim a pequena Lagoa Sussuarana, metáfora do feminino, do acalanto, dos encontros, da alteridade:
E seguimos o corgo que tira da Lagoa Sussuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros – esse tem cachoeiras que cantam, e é d’água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: –É verde! É azul! É verde! É verde!… E longe pedra velha remelêja, vi. Santas águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do baixo campo, as flores do capitão-da-sala – todas vermelhas e alaranjadas, rebrilhando estremecidas, de reflexo. – É o cavalheiro-da-sala… – Diadorim falou, entusiasmado.

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