06 fev

Abraão Antunes e a Rede Brasil de Bibliotecas Comunitárias

 “Durante muito tempo, no Brasil, o livro foi enxergado como veículo da propaganda política oficial. Então sempre esteve, desse ponto de vista, sob censura, e o que havia era uma política do livro, não uma política de leitura. O que acontece muito em São Paulo, nesses movimentos autônomos – falo principalmente em saraus, mas as bibliotecas já são mais de cem, concentradas na Zona Sul –, é que eles têm começado a trabalhar com o livro como um instrumento vivo: ‘vamos dar voz a ele e vamos usar a nossa voz’.”

É o que pensa o jovem bibliotecário Abraão Antunes, 26 anos, um dos idealizadores da Rede Brasil de Bibliotecas Comunitárias. Ativista das políticas de leitura nas periferias de São Paulo, articulado com outros jovens pelo Brasil, e frequentador assíduo de saraus comunitários, Abraão conversou comigo por telefone. Falamos sobre a relação entre o surgimento quase improvisado de muitas bibliotecas comunitárias brasileiras e as políticas governamentais, entre outros assuntos. Vale a pena escutar esse jovem entusiasmado, que recentemente assumiu a empreitada de coordenar projetos na biblioteca escolar do Centro Educacional Unificado (CEU) na periferia de Guarapiranga.

Como surgiu a Rede Brasil de Bibliotecas Comunitárias?

Em 2009, teve um evento na PUC de São Paulo sobre bibliotecas públicas e comunitárias. Mas, embora estivesse no título o termo “biblioteca comunitária”, isso foi deixado muito de lado; não tivemos a oportunidade de um intercâmbio. Então, alguns alunos da UniRio, da UNESP e da USP – que era onde eu estudava – nos reunimos na escadaria e decidimos tentar fazer algo pela Internet, algo que tivesse a ver conosco e possibilitasse trocas e a criação de um encontro. E fomos para as periferias conhecer esses espaços. Na UniRio, por exemplo, criaram um projeto de dois anos, que remodelou algumas bibliotecas. Pessoas de outros Estados, como Manaus, entraram na Rede e começaram a trazer discussões políticas sobre isso. Até o momento já temos cerca de 1.200 membros. No ano passado, fizemos um seminário no SESC Interlagos chamado “E aí, Biblioteca pra quê?”. Em breve vamos divulgar o relatório do que foi discutido lá.

O que caracteriza uma biblioteca comunitária e o que os órgãos públicos ainda não perceberam nelas para a disseminação efetiva de políticas de leitura?

Acho que a questão é ir além do acervo e transformar aquele espaço em um espaço de convívio e de leitura, de construção do hábito de leitura. Nos trabalhos que realizamos na Brechoteca – era um brechó que se transformou em biblioteca, na periferia do Campo Limpo –, ficamos um ano para que as crianças compreendessem o que estávamos fazendo ali. Para a formação de público, exploramos primeiro o lado lúdico, porque percebemos que havia uma carência de contato. Nós percebemos agora a necessidade de visitar as famílias. Então, antes de “biblioteca comunitária”, usamos o termo “biblioteca popular”, porque é uma iniciativa que vem da gente como povo; será comunitária quando os próprios moradores estiverem integrados. No Nordeste, por exemplo, tem um movimento chamado Movimento Integração. Uma vez por mês eles convidam os pais dos leitores, mostram o trabalho de leitura que estão fazendo com os filhos, indicam livros para os pais, para trabalharem juntos, e fazem até oficinas que sirvam como fonte de renda para esses pais e mães.

Se essas bibliotecas nascem praticamente do improviso, o que as legitima perante o poder público, para que sejam inseridas, por exemplo, no Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas?

O cadastro é facilitado, porque não existe um controle direto. Mas há outras dificuldades. Por exemplo, no Núcleo de Consciência Negra da USP, ganhamos um edital público para a biblioteca, mas fomos desclassificados porque consideraram que, se estávamos na universidade, não era uma biblioteca comunitária, era uma biblioteca escolar. Mas, voltando ao que legitima… É muito fácil criar uma biblioteca, mas é difícil gerir – eu mesmo não conseguiria fazer nem dez por cento do que faço na Brechoteca; lá a gente conta com artistas plásticos, psicóloga, estudantes de letras e voluntários poetas do Sarau do Binho., que fundaram aquele espaço. O que diferencia essa biblioteca é a diversidade de atores. Para as bibliotecas chegarem até o poder público, é preciso criar elos; algumas, aqui em São Paulo, são financiadas pelo programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) e a minha expectativa é que se crie uma rede entre elas. O nosso seminário no SESC aconteceu, inclusive, para isso. Estar no Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas é importante, porque os gestores vão poder apresentar isso nas prefeituras de seus municípios e em outros órgãos.

Qual seria o papel do bibliotecário, considerando o potencial transformador do que você chama de política não “de livro”, mas de leitura?

Hoje, no Brasil, estão sendo criados os Planos Municipais do Livro e Leitura – PMLL. Então, precisamos saber desses instrumentos legais. Eu tenho ido muito a reuniões na periferia, onde estamos construindo demandas específicas junto aos coletivos de saraus periféricos… Mas, os cursos de biblioteconomia no Brasil precisam ser remodelados, eles sofrem uma influência muito “americanizada ainda”, visando muito ao objeto e não ao sujeito. Mesmo na USP, não se pensava a biblioteca comunitária como um local de atuação do bibliotecário.

Quando você percebeu essas lacunas na formação dos bibliotecários, onde você buscou uma qualificação a mais?

Eu ainda estou buscando, é uma qualificação de uma vida inteira… Fazendo leituras alternativas e participando da cena literária aqui em São Paulo. O problema é que as pessoas ainda pensam que política é uma coisa muito distante ou chata… Eu tive a sorte de ter contato, na universidade, com alunos de outros cursos, em encontros regionais e nacionais, então eu tive um panorama melhor. A questão é diversificar os contatos e se inserir nas lutas políticas. Saber o que são os Planos Nacionais e Municipais do Livro e Leitura, ver quem são os vereadores que estão na comissão de cultura do seu município, enfim, conhecer os instrumentos legais para saber a quem recorrer.

No momento, a Rede Brasil de Bibliotecas Comunitárias está fora do ar, porque passa por manutenção. Enquanto isso, vocês se articulam em busca de apoio, inclusive junto à iniciativa privada. Que tipo de apoio a Rede precisa para continuar?

Precisamos de apoio para garantir um articulador físico e virtual da Rede e melhorar a interface da ferramenta em uma plataforma mais adequada. Além disso, para fomentar a rede de bibliotecas comunitárias de São Paulo, queremos fazer um documentário com dez dessas iniciativas, ao longo do ano. Aliás, criar mais conteúdos próprios, com entrevistas e possíveis formas de fazer e articular bibliotecas comunitárias, é também a meta da nossa Rede. A principal demanda dessas bibliotecas é pela sustentabilidade. Quando trabalhamos na construção dessas bibliotecas, na verdade gostaríamos de ter uma biblioteca pública ali – estamos fazendo um trabalho que deveria ser do governo. Por outro lado, é uma oportunidade de criarmos um espaço alternativo, outra concepção do que podia ser uma biblioteca. Às vezes, vale mais a pena ter uma biblioteca pequenininha, mas acolhedora, do que um projeto megalômano. Queremos, claro, bibliotecas parques nas periferias, mas valorizamos muito esse aspecto comunitário. Também vamos focar este ano em parcerias com as universidades. Já temos um projeto sendo avaliado pela USP, para termos um bolsista que faça a manutenção da rede e visitas à biblioteca da Favela San Remo, onde existe o Projeto Alavanca, que é de reforço escolar e onde apenas jovens trabalham.

Quando a Rede Brasil de Bibliotecas Comunitárias entrará novamente no ar?

Imagino que, no máximo, em três semanas. 

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