15 abr

Entrevista com Lucila Pastorello, consultora e assessora de ações de incentivo à leitura

Mestre em Semiótica e Linguística Geral pela USP, a fonoaudióloga Lucila Pastorello acaba de concluir o doutorado, com a tese “Leitura em voz alta e a apropriação da escrita pela criança”, na mesma universidade. Além de clinicar, Lucila desenvolve projetos de assessoria em linguagem para programas de incentivo à leitura e recentemente estruturou, com uma amiga, a Cia. de Leitores Públicos, que reúne pessoas interessadas em leitura em voz alta e transmissão de textos literários.
Junto ao Ecofuturo, a pesquisadora ministrou oficinas Brincar de Ler para professores e educadores e também na Penitenciária de Santana, Zona Norte de São Paulo. Além disso, assina o artigo “Porque sim não é resposta: 7 bons motivos para ler para crianças pequenas”, do livro A vida que a gente quer depende do que a gente faz.

 

Em entrevista exclusiva para o Instituto Ecofuturo, além de esclarecer a diferença entre contação de histórias e leitura em voz alta, Lucila propõe esta modalidade de leitura como uma prática interativa que não substitui a leitura silenciosa nem a contação de histórias: “Não se trata de suprir, mas de ofertar”. A pesquisadora fala ainda dos desafios de incorporar esses temas à formação dos educadores no Brasil e atribui a intolerência para com os erros da criança em fase de alfabetização à crença de que a escrita e a leitura são habilidades cognitivas e não culturais. “Suportamos toda a inabilidade das crianças no aprendizado da fala e não suportamos o erro da leitura”. Ao nos depararmos com a força e a clareza do pensamento de Lucila sobre essas práticas, é inevitável que nos questionemos sobre nossa responsabilidade para com a disseminação da leitura, essa “expressão de afeto e cuidado”, uma vez que ultrapassam o papel que comumente atribuímos à escola.

Instituto Ecofuturo: Qual a diferença entre ler e contar?

Lucila Pastorello: Em primeiro lugar é importante que fique claro que ambas as práticas, tanto contar histórias quanto ler em voz alta, são muito interessantes para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita. Cada uma destas práticas tem suas características especiais e não devemos pensar em hierarquizá-las: não há uma melhor do que a outra, há efeitos e usos diferentes. Contar histórias faz parte daquilo que chamamos de Tradição Oral da Cultura; é uma forma muito, muito antiga de transmitir experiências e valores sociais, morais e éticos de geração para geração, através dos tempos, de boca a boca; a prática de contar histórias é muito mais antiga do que a prática da leitura, já que esta última está ligada à invenção da escrita. Quem conta a história normalmente faz algumas adaptações, muda um pouquinho aqui e um pouco lá (na boca do povo: “quem conta um conto aumenta um ponto”). Ao contar uma história podemos ainda usar acessórios que nos ajudem a transmitir o texto, como música, roupas e outros objetos. Além disso, a história pode ou não ter sido escrita; às vezes contamos histórias que ouvimos, mas que não estão escritas, e é aí que reside o valor insubstituível desta prática. Mesmo se contarmos histórias que vieram de um livro, no momento da contação não é necessário que o material escrito esteja presente, já que o que interessa mesmo é a história, a narrativa. Com a leitura a coisa é um pouco diferente. Um professor e pesquisador da USP, o Claudemir Belintane, que orientou meus estudos de doutorado, costuma dizer que na leitura há uma lei-dura. Não dá para adaptar, inventar; o leitor deve ler aquilo que está escrito, já que uma das funções da escrita é registrar um texto, em seu conteúdo e sua forma. Ao lermos em voz alta o texto escrito está presente, o que cria uma triangulação na situação: a escrita, o leitor e aquele que escuta e observa a leitura. Esta triangulação é essencial para trabalharmos o desejo pela leitura e pela escrita.

Ecofuturo: Qual a mensagem para educadores e promotores de leitura sobre a importância de ampliar as ações de leitura em voz alta em vez de contar histórias?

Pastorello: Olha lá, exatamente o que comecei a falar na pergunta anterior: seria ótimo se deixássemos de lado o “em vez de”…. Por que não “além de”? Se a ideia é promoção de leitura é claro que ler em voz alta é a prática mais indicada, pois a presença do escrito (do livro, por exemplo) na atividade faz com que aqueles que ouvem e veem (crianças, normalmente, mas funciona com adultos também) fiquem interessados em saber de onde vem as palavras, a história que envolvem a todos na voz do leitor. A criança vê o leitor vendo o escrito. O leitor, por sua vez, tem um compromisso com o texto escrito e com os ouvintes: ele testemunha a língua, está sujeito às leis da escrita, mas ao mesmo tempo pode deixar sua marca interpretativa com sua voz, fazendo o texto passar por seu corpo e atingir o corpo dos outros. Mas nada impede de pensarmos em práticas que associem a contação de histórias e a leitura em voz alta, desde que sejam oferecidas e entendidas em suas particularidades.
Ecofuturo: Contar histórias para crianças faz bem. Isso parece ser consenso desde tempos imemoriais, mas a importância de ler para crianças pequenas parece ser novidade entre nós – ao menos no que diz respeito à diferença entre contar histórias e ler para os pequeninos. O seu trabalho tem enfatizado muito esse aspecto. Quando tomamos consciência disso, no Brasil, e por que você direcionou suas pesquisas nesse sentido?

 

Pastorello: Acredito que ainda estamos tomando consciência disso no Brasil. Contar histórias tem sido uma prática mais intensiva justamente por conta de suas características: liberdade para criar, resgate de elementos da cultura popular e arrebatamento do espectador através de uma cena dramática, muito próxima do teatro. Ao mesmo tempo, a leitura em voz alta pode algumas vezes servir para normatizar preceitos e condutas morais, através de um discurso pronto e que deve ser repetido sempre da mesma forma, para evitar riscos de uma interpretação diferente da desejada. É o que acontece normalmente nos cultos religiosos e muitas vezes na escola que está a serviço a transmitir conceitos políticos-ideológicos (o que aconteceu no Brasil, nos anos de regime militar, mas também em outros países como o Itália, durante o regime fascista, como nos lembra Umberto Eco). A questão aí não é leitura em voz alta, mas o próprio conceito que se tem de leitura e o uso que se faz dela. Se pensarmos que ler é transformar material gráfico em material sonoro, aí pensaremos que existe uma “leitura certa” e uma “errada”. Mas se considerarmos que ler é produzir sentidos, a leitura em voz alta passa também a ser uma forma de singularizar o discurso, de oferecer aos outros a sua leitura particular. Na atualidade e no Brasil, quando falamos aos professores sobre leitura em voz alta, é comum percebermos a associação com o controle, com a avaliação e não com a fruição do texto e a criação de sentidos interpretativos. Esta associação pode ser motivada pelo uso autoritário e normativo da leitura. Contudo, em minhas pesquisas, vejo que o acesso ao escrito desde a tenra infância é uma prática habitual em países considerados mais “letrados”, como é o caso da França do Canadá, por exemplo. É im portante pensar a leitura como uma via de acesso ao mundo e ao gozo da cidadania plena. Ler escritores brasileiros é uma bela e boa maneira de inserir a criança no mundo das letras e das diversidades linguitico-culturais de nosso país e formar cidadãos críticos e criativos.

Ecofuturo: Os educadores, de modo geral, estão a par dessas sutilezas e preparados para orientar suas práticas a partir disso?

Pastorello: É leviano fazer generalizações, mas o que eu tenho ouvido, particularmente da boca de educadores, é que não existe uma discussão particular sobre o assunto na formação profissional. Mas, em minha experiência, eles estão ávidos por informação de qualidade que possam modificar suas práticas! Quando ministrei as oficinas “Brincar de ler”, promovidas pela Ecofuturo, ficou claro que educadores e promotores de leitura interessam-se e beneficiam-se de uma formação sobre leitura e, mais especificamente, sobre leitura em voz alta. É urgente dar continuidade a este tipo de formação.

Ecofuturo: Em que momento devemos, além de ler para crianças, passar a ler com elas?

Pastorello: Bom, em primeiro lugar podemos ler com as crianças desde muito cedo; antes de serem alfabetizadas, as crianças podem “ler as imagens” enquanto você lê o escrito (a leitura imagética é uma forma interessante e importante de acesso ao sentido de um texto). Ao poucos, à medida que a criança caminha em seu processo de alfabetização, podemos variar os papéis, inventar outros. Ler para o outro é uma expressão de afeto e cuidado. E para pensar: até que idade queremos ser cuidados? Alberto Manguel, um importante escritor e pesquisador argentino, descobriu a potência da leitura em voz lendo para um grande escritor argentino, Jorge Luis Borges, que estava perdendo a visão, mas não o desejo de ler. A partir daí Manguel passou a incorporar a leitura em voz alta como uma prática interativa: passou a ler em voz alta em casa, com sua companheira. Em alguns países como na França e em Portugal, atualmente, existem sessões de leitura em voz alta abertas ao público: a leitura em voz alta é uma oferta e não uma necessariamente uma alternativa a cegos e analfabetos. Acredito que podemos caminhar nessa direção.

Ecofuturo: Ler para crianças plenamente alfabetizadas é ainda importante ou já é hora de mudarmos de estratégia para que passem a ler por si mesmas? Como se faz essa transição, se é que se trata disso?

Pastorello: Acho que já respondi um pouco desta questão, mas não custa insistir: ler em voz alta não substitui a leitura silenciosa e nem a contação de histórias; não se trata de suprir, mas de ofertar. A transição, falando especificamente em pessoas em processo de alfabetização, se dá naturalmente quando há desejo pelo escrito, quando o não – leitor inveja o leitor e se lança no árduo caminho de ser letrado.A leitura em voz alta é uma oferta, um presente para o futuro. Ler para o outro é sempre importante, ainda mais tratando-se de um leitor em formação. Devemos lembrar que a alfabetização é o domínio de uma técnica, mas a formação de um leitor leva anos (quantos anos? Provavelmente a vida!!). Parar de presentear as crianças quando elas se alfabetizam, me parece mais um tipo de punição…..por ter aprendido a ler. Não é um pouco estranho?

Ecofuturo: A quem compete orientar pais e responsáveis sobre a importância de ler para crianças desde o estágio uterino, por exemplo?

Pastorello: Esta é uma pergunta que tem várias possibilidades de resposta. Naturalmente os agentes de saúde e de educação são os responsáveis, digamos, “oficiais” por este tipo de transmissão. Então estamos pensando em todo profissional ligado direta ou indiretamente à responsabilidade de educar e promover saúde, que seriam, de modo geral, os médicos, professores, enfermeiros, fonoaudiólogos, pedagogos…(Percebam que faço uma ligação da leitura com a saúde, mas este é outro tema…). Por outro lado, transmitir cultura e promover cidadania deve ser função de todos nós: espalhando informações, testemunhando vivências… praticando!

Ecofuturo: Você entende a leitura como “uma prática social”, “um modo de estar no mundo” – o que diferenciaria ser alfabetizado de ser leitor. Por outro lado, estamos numa época de grande disseminação da informação, em que somos exortados o tempo todo a pôr em prática a leitura, tanto como decodificação da palavra quanto como modo de estar no mundo. Em vista disso, é inevitável que outras instâncias sociais se aliem às escolas para dar conta da formação do leitor?

Pastorello: Sem dúvida alguma. É imprescindível que todas as esferas da sociedade participem ativamente do letramento em nosso país. Orientar a conduta do outro, normalmente diz respeito a um profissional que tem conhecimento e autoridade para fazê-lo. Mas, se pensarmos de maneira ampliada, testemunhar os efeitos de ler em voz alta pode ser uma função de todos nós: educar não é exclusividade da escola. Este modo de pensar faz com que todos nós tomemos a responsabilidade de transmitir valores. Vivemos em uma cultura letrada, e transmitir o acesso à leitura e escrita é responsabilidade de todos. Então, é preciso criar novos espaços de ler em voz alta, alternativos às práticas pedagógicas atuais. Qualquer espaço social, público ou privado, deve ser considerado como um potencialmente interessante para a transmissão da leitura.

Ecofuturo: A professora Elizabeth Caldas de Almeida, do Rio de Janeiro, enviou-nos a seguinte pergunta pelo blog do Dia Nacional da Leitura: “Gosto de pedir a meus alunos para lerem em voz alta. Muitos resistem, mas explico que não há problemas em errarem ou gaguejarem na leitura, pois a escola é lugar de errar e aprender, e que na sala eles têm todo o direito de errar – e nem sempre isso acontece na sociedade. Mas já ouvi muitos colegas e especialistas dizerem que é antididático. Qual a sua opinião?”.

Pastorello: Esta é uma questão recorrente entre os educadores. O ponto central para dissolver os equívocos está exatamente na função e uso que se toma a leitura em voz alta. Vamos pensar: ler é uma habilidade que se conquista. Quando eu digo que ler é uma prática social, estou salientando o fato que aprendemos a ler com os outros. Todas as nossas conquistas sociais são determinadas pela relação com as outras pessoas. A criança vai aprender a andar, comer com talheres, falar, se comportar e apropriar-se de toda nossa cultura a partir de sua prática e na relação com os outros, não é mesmo? Com a leitura é a mesma coisa. Todos nós caímos ao começar a andar, derrubamos comida ao aprender a comer, erramos ao aprender a falar e erramos e gaguejamos ao aprender a ler. O problema é que suportamos toda a inabilidade das crianças no aprendizado da fala e não suportamos o erro na leitura. É algo que nos faz pensar… Talvez a origem desta confusão esteja na forma com que as crianças entram em contato com a escrita (não com a alfabetização, por favor), tardiamente. Absolutamente não defendo a alfabetização precoce, mas sim a inserção da criança no mundo das letras desde sempre, pela voz do outro. É antididático deixar uma criança ler como pode? É aintididático deixar a criança falar como consegue? Ou seria melhor não deixar a criança que fala errado, ou que não ainda não aprendeu a falar direito, isolada das outras crianças, porque ela não é um bom modelo? Tudo isso tem relação, ma is uma vez, com a crença de que a escrita e a leitura são habilidades cognitivas e não culturais. Mas é preciso mudar este pensamento . E lembrar que: ler se aprende lendo; escrever se aprende escrevendo, da mesma forma que falar, falando, andar, tropeçando. A tolerância que se tem sobre o aprendizado da leitura está fortemente ligada àquilo que entendemos como função e uso da leitura.

Ecofuturo: Lucila, dê-nos uma boa notícia em relação ao incentivo à leitura. A que você se dedica no momento?

Pastorello: Com a conclusão do doutorado, estou me dedicando a divulgar a leitura em voz alta como prática social e cultural, buscando novos espaços para a formação de leitores e apresentação de leitura públicas. Durante a primavera de livros, organizada em 2006 pelo Instituto Ecofuturo, tive a oportunidade de conhecer dois leitores públicos franceses, Marc Roger e Jean Guiet . Em 2007 fui a Paris realizar um estágio de formação e pesquisa com eles (como parte do Doutorado), na Associação Francesa de Leitores Públicos. Voltei de lá com material para minha tese, uma certeza e um desejo: trabalhar com leitura pública no Brasil! Atualmente, concentro minhas atividades na clínica, como fonoaudióloga e no desenvolvimento da Companhia de Leitores Públicos (http://www.leitorespublicos.com.br/), que tem como objetivo reunir pessoas interessadas em pesquisar e discutir os efeitos da leitura em voz alta, bem como estruturar projetos de promoção da leitura, organizar apresentações públicas de leitura em voz alta e formar leitores públicos, que possam multiplicar esta prática, de usar a voz para letrar.

Ecofuturo: No texto coletivo que enviaremos ao Senado Federal, no final do ano, sua palavra não pode faltar. Por favor, diga para nós o que você considera imprescindível de ser amplamente oferecido como política pública de promoção de leitura.

Pastorello: Considero urgente que se invista na formação de educadores, especialmente nas fases iniciais da escolarização – educação infantil e primeiros anos do ensino fundamental. Estes primeiros anos são determinantes para que se possa trabalhar o enlace da criança pelas letras, já que o afeto é um aspecto evidente nas crianças pequenas. Desde cedo a criança deve ser afetada pelas letras! É preciso que possamos contar com professores conscientes das funções social, cultural e subjetivante da leitura, e principalmente: precisamos de professores que sejam verdadeiramente leitores. Em outras palavras, o professor deve transmitir o desejo pela leitura, a partir de sua própria experiência com a escrita: para ter pleno acesso à cidadania é preciso ao mesmo tempo respeitar as regras da língua e da escrita, mas assumir uma postura crítica e criativa frente ao escrito. Só assim poderemos usufruir, todos, do potencial transformador da leitura. Ainda: criar novos espaços e práticas para a leitura, descolando-a da escola e valorizando sua dimensão cultural é uma ideia que deve ser considerada em políticas publicas de incentivo à leitura: ler não é coisa de escola, é coisa da vida!

Contato: lucila@leitorespublicos.com.br

Comentários

  1. Oi Gente, estou fazendo uma visitinha por aqui.
    Gostei bastante do site, vou ver se acompanho toda semana suas postagens
    Gosto muito desse tipo de conteúdo um Abraço 🙂

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Deixe seu comentário