28 jun

Leituras para o cuidado: o médico leitor e o sofrimento alheio

É de se supor que um paciente, sobretudo aquele demasiadamente debilitado, se confronte com questões relacionadas ao sentido da vida. Sendo assim, a necessidade de narrar a própria trajetória como recurso para conferir sentido ao que se viveu deve se impor insistentemente… Há literatura nisso? Endereçamos esta e outras perguntas ao Dr. Stennio Machado, cirurgião geral e coloproctologista apaixonado por literatura. Nesta entrevista gentilmente concedida ao Instituto Ecofuturo, Stennio fala, com grande sensibilidade, da relação entre literatura e vida pessoal e da influência da leitura sobre o seu papel de cuidador, como profissional da saúde. A entrevista é ainda a primeira de uma série que pretende dar continuidade às discussões suscitadas pela nossa publicação Pra que serve a literatura?, agora estendendo o debate a interlocuções outras que, não sendo da área de letras ou da educação, são contudo repletas de relatos potentes de leituras literárias como experiências modificadoras do indivíduo e da sua forma de compreender e agir no mundo.

Quando foi que o senhor se sentiu irremediavelmente apaixonado pela literatura?

Cresci em uma casa sem livros e sem leitores. Tudo o que existia ali eram alguns gibis velhos e algumas edições antigas da National Geographic, daquelas patrocinadas por laboratórios farmacêuticos. Minha história com a literatura começou pra valer bem tarde mesmo. A primeira faísca, veja só, foi no pré-vestibular. Um professor tido por todos como amalucado tinha o “péssimo” hábito de recomendar autores que ele julgava necessários para o mínimo conhecimento da narrativa moderna, como ele mesmo gostava de frisar. Numa dessas, ele contou a história de um sujeito que acorda e se vê transformado em um inseto e, para contextualizar melhor, contou ainda que um autor goiano chegou muito próximo daquele estrangeiro. Fui então apresentado a Franz Kafka e José J. Veiga. Segui como leitor bissexto, com coisas aqui e ali, até que, já na faculdade, no Rio de Janeiro, em um período não muito fácil, durante um desses papos de boteco com um grande amigo, contei que havia acabado de ler um livro fantástico, sobre um velho que sai ao mar para uma batalha pela vida – O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, foi o livro da retomada. E meu amigo contou sobre um livro que narra a saga de uma família condenada à solidão e à loucura – e Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, entrou em cena. Descobri um grande alento nos livros, e que melhor que procurar por respostas, era descobrir mais perguntas.

Durante sua formação como médico, qual o lugar da literatura em sua vida? Como a conciliou com leituras específicas da sua formação profissional?

Sempre brinquei que meu grande hobby era a Medicina e Literatura, sim, era a coisa séria. No Rio de Janeiro há uma feira de livros itinerante que, durante todo o ano, percorre a cidade. Além disso, há inúmeras bancas de livros usados e sebos espalhados por toda a cidade. Durante um bom tempo comprei os livros muito mais pelo preço que pela qualidade literária. Por mais estranho que possa parecer, consegui alguns livros fundamentais para construção do leitor que sou hoje pagando o preço de um litro de leite. Meu primeiro Grande Sertão: Veredas foi arrematado pela bagatela de cinco reais, e era a primeira edição, de 1956! Na faculdade não sei como fazia, mas lia em média três livros ao mesmo tempo. Um no ônibus ou no trem (normalmente contos ou poesia), outro em casa (quase sempre um romance mais parrudo) e o outro era na faculdade, nos períodos vagos. A literatura médica era vista como trabalho: sentava e lia um capítulo com bastante atenção, dava um pequeno intervalo e lia algo totalmente diferente, como que pra estimular um pouco mais o raciocínio e fazer um pouco de musculação cerebral; então voltava e relia aquele capítulo mais uma vez – e era como se tudo enfim se fixasse melhor.

Medicina e Literatura – qual a relação?

Vejo como coisas antagônicas que se complementam. A medicina, no meu caso, como cirurgião, é, ainda que não possa ser, algo extremamente objetivo. Digo que não pode ser pelo fato de que pessoas diferentes reagem de maneira distinta à mesma patologia. Mas, de maneira geral, do cirurgião espera-se objetividade. A literatura é a arte da dúvida, responde com mais perguntas. Mas com ela consigo ver melhor o que há de subjetivo naquela objetividade.

O senhor costuma indicar leituras literárias aos seus pacientes?

Dificilmente. A exceção se dá apenas quando, durante a consulta, o paciente demonstra algum interesse pela leitura. Quando recebemos um paciente, ele habitualmente quer respostas; algo o angustiou a tal ponto que o fez se entregar a um “estranho”. Sou cirurgião, acima de tudo, tenho que lidar de maneira bastante objetiva e pragmática. Quando, por exemplo, atendo um paciente que está com câncer e precisará de uma cirurgia agressiva, é difícil imaginar o que se passa com ele naquele exato momento e quase sempre ele quer apenas alguém ao seu lado e muito pouco além disso. O médico, pelo contrário: ao ler, posso me colocar em uma infinidade de lugares, o que de outra forma poderia parecer especulação pura.

E, se pondo nesses outros lugares, o senhor compreende o quê?

Posso citar, por exemplo, três leituras recentes que me ajudaram a compreender o sofrimento alheio: A Restauração das Horas, de Paul Harding, que narra a história de um homem perdido em suas memórias, relembrando sua vida, esperando pela morte, deitado em uma cama de hospital que fica em sua sala de estar; Giliad, segundo romance de Marilynne Robinson, que narra a história de um reverendo, John Ames – diagnosticado com um problema cardíaco e sabendo que lhe sobra pouco tempo de vida em seus mais de 70 anos, decide deixar para seu filho de seis anos o relato por escrito de sua vida e o que sua profissão significou para si, para seu pai e para seu avô, todos ministros religiosos como ele. O livro é uma declaração de amor à vida e uma lamento por sua brevidade. E finalmente, Perder, primeiro livro da autora argentina Raquel Robles, vencedor do Premio Clarín Novelo (2008). Conta a história de uma mãe que perde seu filho de cinco anos em um acidente automobilístico. Todos os personagens parecem condenados à perda (há mães que perdem seus filhos e vice-versa) e a algo que lhes é dado depois. A dor, apesar de parecer insuportável, é uma travessia que permite redescobrir o desejo de viver. Há vários textos que nos ancoram à realidade. A ficção acaba nos ajudando a compreender melhor a força da realidade, que muitas vezes parece se comportar como ficção. A literatura me ajuda a compreender melhor este nosso mundo absurdo.

Supomos que o seu tempo seja bastante apertado, na corrida para salvar vidas. Contudo, além de devorar clássicos literários, o senhor costuma acompanhar a produção de novos autores. Como administra o seu tempo, de modo a atender aos apelos da profissão, o cuidado com a família e múltiplas leituras?

Hoje as coisas estão mais difíceis, leio bem menos, mas sempre há um livro debaixo do braço. Em casa tentamos compartilhar bastante as experiências. Sempre que leio algo que me agrada já passo logo para minha esposa. A leitura pode ser uma atividade solitária, mas os resultados devem ser compartilhados. Tento ler para nossa filha, tarefa nem sempre simples – ela está na fase dos “porquês”, então, depois de cada frase que termino, ela já quer saber um por quê… Mas vamos tentando. Quanto aos novos autores, acho que fico a procurar o livro que ainda não escrevi.

Conte-nos uma história, ou um episódio, sobre a aplicação da literatura na clínica.

Na verdade, uma história que me deixou muito impressionado foi exatamente o contrário. Na época eu estava cursando a cadeira de Clínica Médica na faculdade e lia muito, muito mesmo. Havia acabado de ser “apresentado” ao António Lobo Antunes, escritor português que é psiquiatra, e gostava muito de conversar com os pacientes – não necessariamente sobre suas doenças, mas sobre suas vidas, queria ajudar de alguma outra forma, queria ser um amigo, não sei ao certo… Mas o fato é que num determinado dia o paciente me chamou e disse que gostava muito de mim, adorava aqueles períodos de conversa, mas queria saber como estava sua saúde, se havia alguma previsão de alta ou no mínimo alguma novidade sobre seu caso.

Nascido em Iporá, interior de Goiás, em 1978, Stennio Machado estudou em escola pública, mudando-se para Goiânia na fase pré-vestibular. Formou-se pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro e, desde 2005, reside em São Paulo, atuando como cirurgião geral e coloproctologista. Além da literatura, é apaixonado por artes marciais, tendo se graduado faixa preta em tae kuom do, na adolescência. Hoje treina Jiu Jitsu e corre, quando consegue.

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