07 ago

Ler e contar: a formação do leitor como um triângulo amoroso

“As histórias são bálsamos medicinais. Achei as histórias interessantes desde que ouvi minha primeira. Elas têm uma força! Não exigem que se faça nada, que se seja nada, que se aja de nenhum modo – basta que prestemos atenção”.

Esta afirmação da psicanalista norte-americana Clarissa Pinkola Estés, claro, não é nenhuma novidade. Mas vale pela precisão e beleza com que nos recorda de uma atitude que a humanidade reconhece pelo menos desde que nos humanizamos. Se, como diz o filósofo espanhol Fernando Saváter, não nascemos humanos, “nos tornamos humanos por convívio e por contato”, essa sofisticada metamorfose jamais se manteria em pé, não fosse nossa capacidade de ouvir e de narrar histórias. Na mínima melodia articulada pela voz humana se identifica o DNA dos homens e mulheres que somos ou que haveremos de ser. É por isso que a imagem de nossos ancestrais em volta do fogo contando “causos” de terror ou de glória será sempre atual – ainda que a atualizemos munidos de livros, celulares e tablets.

Mas desde esse feito extraordinário e decisivo que foi a invenção da linguagem, muitas tecnologias foram desenvolvidas em favor da nossa necessidade ancestral de narrar. De todas elas, nenhuma foi tão decisiva, irreversível e transformadora da nossa relação com a palavra como a invenção da escrita. Não cabe desenvolver aqui a reviravolta que isso ocasionou na mentalidade humana, e sobre isso são escritas até hoje milhares de teses em todo o mundo. Para a nossa abordagem, entretanto, basta destacar que uma técnica (a leitura) não veio substituir a outra (contar histórias) – mas atentar para as diferenças entre uma outra é fundamental, quando queremos promover de fato a formação de leitores.

De ler e de contar

Contar história é uma maneira antiquíssima e eficaz de fortificar e perpetuar a cultura, através da transmissão de valores éticos ou morais, de técnicas essenciais à manutenção da comunidade, de ritos de passagem inerentes aos ciclos da vida, etc. Passadas de geração para geração, de boca em boca, se ajustam e se transformam conforme as necessidades. Como a palavra também cura, é “bálsamo medicinal” – pode alegrar, comover, acalentar, entreter, fazer rir, consolar –, contar histórias tem muito de improviso e adaptação ao contexto e à função a que se destina, dependendo muito da impressão que se quer imprimir na alma daquele que ouve. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, já dizia um antigo antepassado nosso cujo nome se perdeu na história, mas que com certeza foi um grande narrador. E isso vale mesmo para histórias que foram escritas. No ato de contar, o material escrito não precisa estar presente, pois o que interessa é o enredo, a narrativa. Sendo assim, além da própria voz, podemos usar recursos diversos, como fantoches, técnicas teatrais, caracterizações de personagens, objetos, música, etc.

Agora, ler é outra história. Na leitura de um conto, mesmo o ponto permanece onde está. Até porque a função da escrita é preservar tanto a história quanto a forma como ela está registrada. Portanto, se é para acrescentar alguma coisa, isso corre por conta de quem ouve: vai depender de como a história se acomoda no espírito de quem a recebe, que é livre para interpretar. Mas àquele que se comprometeu a ler para os outros cabe respeitar cado ponto, cada vírgula e a inteireza da frase.

Ler em voz alta: um triângulo amoroso entre você, o livro e o pequeno leitor

Vale enfatizar: não se trata de substituir uma prática pela outra, nem de estabelecer que esta seja melhor do que aquela – enfim, não se trata de hierarquizar. Ambas as práticas são importantes para a aquisição da linguagem e o desenvolvimento da escrita. Mas, em se tratando de promoção de leitura e formação efetiva de leitores, a presença do livro e o respeito às particularidades da leitura são indispensáveis, e aí precisamos ficar atentos entre as diferenças entre ler e contar. Comparada à narrativa oral, a leitura é algo muito recente e ainda estamos aprendendo como é que se faz. Grandes leitores e autores, como Goethe, advertem que aprender a ler é algo que não paramos de aprender durante uma vida inteira!

Em abril de 2010, veiculamos em nosso antigo blog uma excelente entrevista com a fonoaudióloga e assessora em leitura pública Lucila Pastorello. Vale a pena reproduzir abaixo alguns trechos preciosos que nos ajudam a pensar e aperfeiçoar nossas práticas de mediadores de leitura. Vejamos.

Com a leitura a coisa é um pouco diferente. Um professor e pesquisador da USP, o Claudemir Belintane, que orientou meus estudos de doutorado, costuma dizer que na leitura há uma lei-dura. Não dá para adaptar, inventar; o leitor deve ler aquilo que está escrito, já que uma das funções da escrita é registrar um texto, em seu conteúdo e sua forma.

Se a ideia é promoção de leitura, é claro que ler em voz alta é a prática mais indicada, pois a presença do escrito (do livro, por exemplo) na atividade faz com que aqueles que ouvem e veem (crianças, normalmente, mas funciona com adultos também) fiquem interessados em saber de onde vêm as palavras, a história que envolvem a todos na voz do leitor. A criança vê o leitor vendo o escrito. O leitor, por sua vez, tem um compromisso com o texto escrito e com os ouvintes: ele testemunha a língua, está sujeito às leis da escrita, mas ao mesmo tempo pode deixar sua marca interpretativa com sua voz, fazendo o texto passar por seu corpo e atingir o corpo dos outros.

Ao lermos em voz alta, o texto escrito está presente, o que cria uma triangulação na situação: a escrita, o leitor e aquele que escuta e observa a leitura. Esta triangulação é essencial para trabalharmos o desejo pela leitura e pela escrita. A transição, falando especificamente em pessoas em processo de alfabetização, se dá naturalmente quando há desejo pelo escrito, quando o não-leitor inveja o leitor e se lança no árduo caminho de ser letrado. Está aí um bom sentido para o termo "mediador de leitura". A leitura em voz alta é uma oferta, um presente para o futuro. Ler para o outro é sempre importante, ainda mais tratando-se de um leitor em formação. Devemos lembrar que a alfabetização é o domínio de uma técnica, mas a formação de um leitor leva anos. Quantos anos? Provavelmente a vida!

Feitos esses esclarecimentos preciosos, uma pergunta não quer calar: por que ainda somos resistentes em admitir essas diferenças e por que, sempre que podemos, colocamos a contação de histórias no lugar da leitura em voz alta? Lucila esclarece.

Contar histórias tem sido uma prática mais intensa justamente por conta de suas características: liberdade para criar, resgate de elementos da cultura popular e arrebatamento do espectador através de uma cena dramática, muito próxima do teatro. Além disso, no Brasil, quando falamos aos professores sobre leitura em voz alta, é comum percebermos a associação ao controle, com a avaliação e não com a fruição do texto e a criação de sentidos interpretativos. Esta associação pode ser motivada pelo uso autoritário e normativo da leitura. Se pensarmos que ler é transformar o material gráfico em material sonoro, aí pensamos que existe uma “leitura certa” e uma “errada”. Mas, se considerarmos que ler é produzir sentidos, a leitura em voz alta passa também a ser uma forma de singularizar o discurso, de oferecer aos outros a sua leitura particular.

Se ler é algo que se exercita e se aprende pela vida toda, podemos e devemos oferecer leitura sempre e em todos os lugares, inclusive para pessoas plenamente alfabetizadas. Segundo Lucila:

Podemos ler com as crianças desde muito cedo; antes de serem alfabetizadas, elas podem “ler as imagens” enquanto você lê o escrito (a leitura imagética é uma forma interessante e importante de acesso ao sentido de um texto). Aos poucos, à medida que a criança caminha em seu processo de alfabetização, podemos variar os papéis, inventar outros. Ler para o outro é uma expressão de afeto e cuidado. E para pensar: até que idade queremos ser cuidados? Alberto Manguel, um importante escritor e pesquisador argentino, descobriu a potência da leitura em voz alta lendo para um grande escritor argentino, Jorge Luis Borges, que estava perdendo a visão. A partir daí Manguel passou a incorporar a leitura em voz alta como uma prática interativa: passou a ler em voz alta em casa, com sua companheira. Em alguns países como França e Portugal, atualmente existem sessões de leitura em voz alta abertas ao público: a leitura em voz alta é uma oferta e não necessariamente uma alternativa a cegos e analfabetos. Não se trata de suprir, mas de ofertar.

 

Um presente pra você, leitor

Dissemos parágrafos acima que, na contação de histórias, o que importa é a narrativa, o conteúdo que é contado – o enredo da história. Mas, quando se trata de leitura de literatura, interessa não só o que se conta, mas também a forma como o autor narra. Por exemplo, qualquer um de nós pode dizer que, do alto de um voo de avião, as coisas aqui embaixo parecem tão minúsculas que um homem, um cavalo e um boi se tornam verdadeiras formiguinhas. Mas existe um jeito de dizer isso que só pode ser dito por Guimarães Rosa. Do conto “As margens da alegria”, extraímos a seguinte pérola: “Se homens, meninos, cavalos e bois – assim insetos?”.

E não para por aí o deslumbramento desse conto. Ele inteiro é construído com pérolas, para o nosso “milmaravilhamento”. Um menino vê pela primeira vez um peru no quintal e de repente não é mais um peru, é a coisa mais deslumbrante do mundo, é uma experiência arrebatadora, é a iluminação de uma vida inteira:

“O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão – brusco, rijo, – se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de azul-claro, raro, de céu de sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto – o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro gluglo. O menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para passeio”.

Não é maravilhoso?! É aquele tipo de leitura para ser relida. Relida, não: translida. Não, ainda não é isso, é aquele tipo de coisa que exige ser: pro-cla-ma-da! É daqueles trechos pelos quais passamos e imediatamente queremos chamar todo o mundo para ver-ouvir-ler-se-maravilhar. Exige ser compartilhado!

Tudo bem, vocês já perceberam com toda razão que Guimarães Rosa é no mínimo o escritor de cabeceira de certas pessoas aqui no Ecofuturo… Mas, experimente ler o trecho acima em voz alta. Leu? Então, tem mais: experimente a sensação de movimentar bem os lábios, sentindo cada movimento, abrindo bem a boca, articulando cada palavra vagarosamente, sentindo o movimento da língua, conforme a exigência de cada sílaba, atento à delícia da pronúncia e à sonoridade – especialmente em: “empáfia”, “torneado”, “redondoso”, “entufou”, “ríspida grandeza tonitruante” e “abotoado grosso de bagas rubras”… Aposto que você sentiu um negócio estranho e maravilhoso no próprio corpo.

Sentiu? Então, corre e anuncie aos outros a boa nova!

 

Equipe responsável: Instituto Ecofuturo

Texto: Reni Adriano

 

Para ir além: 4 publicações selecionadas especialmente para você viver seu caso de amor promovendo leitura Porque sim não é resposta: 7 bons motivos para ler para crianças pequenas  (artigo de Lucila Pastorello escrito especialmente para o Dia Nacional da Leitura)

 

Passaporte da leitura e da escrita – Pra qualquer lugar do mundo

 

Roteiro de Leitura Pública  (O texto que você adora e quer compartilhar, por enquanto, é apenas seu. Mas pode e deve ser também dos outros. A relação amorosa entre escritor, leitor e personagem pode se estender também aos outros, através de você! Aventure-se em oferecer, através da sua própria voz, um livro inteiro, do jeitinho que o autor escreveu!)

 A vida que a gente quer depende do que a gente faz

 

 

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