03 jul

Nossa bela e destrutiva criatura

A cidade é uma ilusão. Não é feita de concreto, pessoas ou automóveis. É uma ideia, uma tentativa. Um acordo tácito e silencioso de convivência. Uma cidade é um aglomerado de expectativas e possibilidades. Pode dar certo, e germinar. Pode gerar prosperidade, cultura, felicidade e conforto, entre outros benefícios. Mas sempre é uma promessa, e que quase nunca se cumpre, mesmo quando é mantida.

Até hoje, independente de seu sucesso, duração ou poder alcançado, nenhuma cidade na história humana deu conta de trazer estes benefícios nem ao mesmo tempo, nem para todas as pessoas. Cidades são feitas à nossa semelhança, e apontar defeitos na criatura é uma indesejada (embora desejável) autocrítica. Como na novela de Mary Shelley, tantas vezes adaptada, e poucas vezes lida, o super-humano criado pelo Dr. Frankenstein tem todas as nossas qualidades (e defeitos) em grau superlativo. É belo e estranho. E o começo de seus transtornos começa com o abandono da criatura pelo criador. Cidades precisam de cuidados constantes, ou tornam-se violentas.

São sistemas complexos, e em permanente mudança. A contraposição não é gratuita: a única permanência possível na cidade, a única certeza alcançada é a de que a cada dia, tudo muda, tudo é diferente. Não somente pelas pessoas, e sua óbvia movimentação; sua estrutura também está em constante processamento. Sob a ação simultânea e concorrente tanto de agentes formais, planos e obras que remodelam a cidade de modo oficial, quanto de agentes informais, nós mesmos, que através de pequenas ações cotidianas vamos conformando o espaço público e privado. Uma cerca delimitando uma propriedade, pregada no chão por um agricultor há duzentos anos, resulta, depois de muitas transformações da cidade, no traçado de uma avenida. Nossa duração no planeta só permite captarmos pequenos instantes. Não vemos o todo.

Não existem soluções definitivas para as cidades, não existem verdades absolutas ou certezas. Na cidade, tudo é ponto de vista. A cidade vista pelo viajante não é a mesma vista pelo mensageiro. A paisagem desenhada pelo pintor diverge da análise do planejador. E qual é a real? A resposta é: não há tal coisa. Tudo é um delicado caleidoscópio. Quando achamos que encontramos uma certeza, e queremos mostrá-la, orgulhosos, ao mudar de mão, e de visão, os fragmentos se movem, e tudo muda. Questionamentos podem ser coletivos, mas certezas são individuais, como a visão.

De forma mais concreta (ah, que entediante é o mundo dos fatos…), já falamos neste mesmo espaço sobre o conceito de cidade, de suas várias definições e abrangências. Seu caráter é uma atribuição direta da qualidade da proteção oferecida aos indivíduos que nela vivem, e nela ancoram suas atividades. Essa promessa de proteção, que nem sempre se cumpre, como dissemos. A cidade, em tese, deve abrigar os cidadãos, acolher suas necessidades e dar suporte aos seus sonhos.

A questão relevante, então, é: quem é considerado cidadão?

A cidade, enquanto organização do território e representação física das sociedades, tem assumido muitas configurações. Tem sido continuamente pensada, teorizada, planejada, reformada. E segue brotando, sem ordem, sem método, sem ritmo e sem partitura, a despeito de todas as tentativas de normatização e esquadro. Fugindo para o vazio, como o monstro de Shelley. Espalhando-se pelo território, consumindo recursos naturais, deixando restos e rastros difíceis de apagar. Tem sido benéfica para aqueles que são incluídos, às vezes generosa e recompensadora, mas hostil e agressiva aos que não se enquadram. E os critérios de inclusão são muito variados. No paraíso prometido da metrópole, muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.

Apesar do quase consenso (afinal, já não há mais desculpa para algumas posturas, dado o avançado da história) privilegiando a inclusão e o compartilhamento sensato de recursos disponíveis no planeta, a exclusividade é o fetiche do século. Ninguém quer ser igual a ninguém. Produtos anunciados como ‘exclusivos’ são valorizados. Não há leitura critica sobre o termo. Ao mesmo tempo que se prega se prega o respeito às diversidades, obter aquilo que se baseia na exclusão é índice de sucesso. Assim somos nós, e o monstro que criamos, deixamos sem carinho nem cuidado, e que agora anda por aí causando alguns problemas. Cada descoberta humana, cada avanço tecnológico ou nova teoria, que, em tese, deveria tornar possível a distribuição de benefícios a mais pessoas ao redor do planeta, paradoxalmente, aumenta o fosso que separa os homens em categorias.

Somos classificados e catalogados continuamente, e assim vamos assumindo posturas que definem nossa individualidade. Repousamos todos em minúsculos compartimentos, e não estou falando dos apartamentos de 35 m2 que voltam a aparecer no mercado imobiliário. Espetados como besouros em incômodas gavetas taxonômicas, somos continuamente analisados pela sociedade, pela política e pelo mercado.

Aqui, um parêntese, já que falamos do mercado: o indivíduo, sozinho, voltou a ser um perfil consumidor. Saem da cena publicitária os casais felizes, com duas crianças e dentição branqueada a laser, e entram os indivíduos auto-suficientes, independentes e solitários, atravessando a cidade com seus fones de ouvido a protegê-los dos ruídos do mundo. Em lugar de conviver, o que é difícil, gasta tempo, e exige cuidado e encontro, muita gente opta por existir individualmente. Conectados, em rede, aggiornati; sozinhos, entretanto. ‘Descolados’, no mais claro sentido da palavra: sem nada que os una ao coletivo.

Paradoxalmente, ao se buscar a suprema ausência de símile, o exercício da particularidade mergulha de vez no comportamento de coletividade. A busca pela diferença nos aproxima, e por dissociação, somos semelhantes. Ao observar-se um ambiente de transporte coletivo em qualquer metrópole contemporânea, é possível identificar estes padrões de homogeneidade heterogênea (ou heterogeneidade homogênea, não importa).

Certo, era assim, ou parecia ser, até pouco tempo. Não mais.

Como se nada disso de que falamos fizesse sentido, de repente, ao longo das cidades do mundo, começam a surgir comportamentos coletivos, catalisados por conexões em rede: a união de muitos indivíduos solitários, convivendo, quando muito, por obrigação, com seus semelhantes de carne e osso no desgastante e insosso cotidiano, em uma coleção de solidões compartilhadas. Forma-se a multidão, mas ela não é um coletivo. Portanto, que não se estranhe o fato dela não possuir uma bandeira única, ou uma só palavra de ordem (ou mesmo eventualmente não ter nenhuma), afinal cada um saiu à rua por suas próprias demandas. Não houve manifesto, não houve pedido de fala em plenário, não houve ‘questão de ordem’ para discussão da pauta prevista, e aprovação da ata da reunião anterior. Não há ata, somente ato.

Nada de arquétipo de herói salvando o coletivo, desviando o asteróide que atingiria a Terra; nosso paladino de mil braços gira o globo para voltar o tempo e salvar apenas sua amada. Já vimos esse filme antes, mas nunca com tantos protagonistas.

Autor: Alessandro Sbampato

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