19 out

O que a literatura me deu – uma conversa com Carlos Herculano Lopes

Escritor de sucesso, com vários prêmios literários e obras adaptadas para o cinema, Carlos Herculano Lopes deve tudo à literatura. Do aconchego e embalo por histórias orais no seu tempo de menino interiorano, passando pela consciência de um vasto repertório cultural que lhe permitiu desbravar a cidade grande, ao mais recente presente: um apanhado de histórias ouvidas de passageiros durante suas viagens entre Coluna e Belo Horizonte, que resultou no romance Poltrona 27, seu 13° livro. Em entrevista gentilmente concedida ao Instituto Ecofuturo, por e-mail, no momento em que se preparava para tirar férias, o autor fala da sua formação entre leituras e do papel do escritor na formação de leitores e na democratização do acesso ao livro. Aos poucos vai se revelando, pela ótica e pela prosa do escritor mineiro, para que serve a literatura.

Como você se interessou pelos livros e quando é que esse interesse se converteu em paixão? O fato de ter tido uma mãe professora concorreu para isso?
Comecei a me interessar pelos livros quando criança, em Coluna, uma cidade do Vale do Rio Doce, em Minas, onde nasci. Na escola onde estudei, Grupo Escolar Professor Heroína Torres, existia uma pequena biblioteca. Li quase todos os livros. Também minha mãe, Iracema Aguiar, que era professora, me incentivou muito. Comprou uma coleção da Revista Curiosidades, outra, com as obras de Monteiro Lobato, livros de José Mauro de Vasconcelos, Jorge Amado. Todos eles foram me levando, aos poucos, a este universo mágico, e único, que é a literatura.
Especialistas têm ressaltado cada vez mais a importância da introdução da leitura como um gesto de afeto, uma maneira de estar junto, um aspecto do cuidado… Você tem lembranças de experiências assim – seja na oferta de leitura, seja nas rodas de conversas, ouvindo “causos”?
Estes livros que ganhei da minha mãe, e que compartilhava com as minhas sete irmãs, me marcaram muito. E de muitos deles ainda me recordo até hoje, como amigos que ficaram. Também estarão, para sempre, associados à figura da doadora, que felizmente ainda está viva, e cada vez mais apaixonada pela literatura. Por outro lado, como na minha cidade não havia luz, sempre ouvia muitas histórias, muitos “causos” à noite, antes de dormir, contados pelos meus pais, pelas empregadas, pelos vaqueiros. Esta oralidade, estas histórias ouvidas, também foram muito importantes na minha futura formação como escritor.
Você, menino interiorano, chegou à capital mineira no final da década de 60, e mais de uma vez declarou que foi a “descoberta de um outro mundo”. Por outro lado, você afirma também ter percebido que levava uma vantagem em relação aos colegas belo-horizontinos: era portador de uma cultura interiorana forte e assimilava uma cultura nova, urbana. Como se deu essa descoberta e o que isso acrescentou à sua formação e visão de mundo?
Esta descoberta se deu um ano, talvez dois, depois que cheguei a Belo Horizonte, e fui estudar no Colégio Arnaldo, ainda hoje um dos mais tradicionais da cidade. A primeira grande diferença se deu em  relação ao sotaque, que era bem diferente da maneira de falar dos meninos daqui, e chamava muito a atenção. Com o tempo, não só eu, mas um grupo grande, que incluía meninos de várias outras cidades de Minas, e de outros estados, também percebeu isto, nos unimos, e chegamos a ficar muito fortes no colégio, seja em relação ao estudo, como também nos esportes. A cultura “forte”, que trazia comigo, valeu muito, pois eu sabia de coisas que os meninos da capital nem imaginavam, e às vezes se juntavam, na hora do recreio,  para ouvir as minhas histórias. Muitas das quais gosto de contar até hoje. Tenho ainda muito desta oralidade, cada vez mais rara no interior mineiro, ao qual sempre volto, pois tenho uma pequena fazenda de criação de gado na minha terra.
Insistindo ainda um pouco nesse tema: qual o repertório que você trazia e que te favoreceu no desafio de ingressar em “formas culturais” tão diversas das da sua origem?
Eu sabia contar histórias: de assombração, da mula-sem-cabeça, da Moura Torta, dos Três cachorros encantados, e tantas outras, das quais os meninos daqui não tinham conhecimento. Todas foram ouvidas à noite, na boca do fogão, enquanto não chegava a hora de dormir, e foram passadas a mim, na maioria das vezes, por pessoas analfabetas, que nunca tinham conhecido um livro, mas que as ouviram dos seus antepassados. Também os meus pais, e alguns tios, eram grandes contadores de “causos”, que me marcaram para sempre. Muitos destes “causos” continuo contando pela vida afora.
De leitor a escritor, como foi o percurso?
As duas coisas caminharam juntas. Já no final de 1968, quando eu estava com 12 anos, comecei a escrever um livro, lá mesmo em Coluna,  O Estilingue (histórias de um menino), que ficou pronto em 1970, quando eu já morava em Belo Horizonte. Nunca mais voltei a ele, e achei que tinha perdido nas muitas mudanças de uma casa para outra. Mas há pouco tempo, ao doar meu acervo para o Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG, cujo editor é professor e crítico literário Wander Melo Miranda,  acabei encontrando os originais. A alegria foi indescritível, e aquele livreto, que com muita tristeza eu julgava perdido, foi recuperado na íntegra, e será publicado no início de 2012, pela Editora da UFMG. Esta foi uma das maiores alegrias que tive nos últimos tempos.
Num país com déficit gravíssimo de leitura, como é o caso do Brasil, o escritor pode se contentar com “apenas” escrever? Nesse sentido, é concebível uma intervenção do autor na oferta de leitura, quem sabe para além da publicação de livros?
A dificuldade de chegar até ao público, para a maioria dos escritores, continua a ser um grande problema. Os fatores são diversos: imensa oferta de livros no mercado, a concorrência com os best sellers estrangeiros, o preço dos livros, que às vezes impede a muitas pessoas de adquiri-los. Tudo isso, associando-se à nossa falta de tradição em relação à leitura, faz com que o livro, no Brasil, como “objeto de consumo”, ainda seja um artigo raro, acessível a poucos. Mas sou otimista, acredito que as coisas estão melhorando. Há poucos dias estive em Sabará, falando para uns alunos de uma escola da periferia da cidade, a Escola Estatual Professor João de Arruda Pinto, que fica num bairro muito violento. Eles leram meu romance, O Vestido, cujos exemplares haviam sido adquiridos pela própria escola, já que os alunos não podiam comprar. Fiquei encantado com a respostas daqueles meninos e meninas, de 16, 17 anos. As perguntas que fizeram, as observações, os seus comentários. Tenho percebido, em minhas andanças por aí, que quando existe incentivo – e o acesso aos livros – os jovens se interessam, se inteiram e mergulham na história, como no exemplo que acabei de dar.
 Tradicionalmente, há uma certa mistificação do escritor, por muitos imaginado numa “torre de marfim”, para usarmos uma imagem bastante desgastada mas que ainda circula por aí… Você acha que isso contribuiu para a noção de literatura como uma espécie de biscoito fino para poucos?
Com toda certeza, e cabe a nós, os escritores, fazer a nossa parte para acabar com isto: seja indo à escolas, participando de eventos literários, tornando o texto acessível por todos os meios possíveis. Da minha parte, tenho tentado, quando surge uma oportunidade. Este contato direto com o leitor, o poder olhar nos olhos, é o que faz a diferença, e ajuda nesta desmistificação. Faz o escritor sair da “torre de marfim”, e se tornar o que na realidade ele nunca deixou de ser, um ser humano normal, cheio de qualidades e defeitos, como outro qualquer.
Um livro que tenha modificado a sua vida.
Vamos a dois: O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, e A Arte da Guerra, de Sun Tzu.
 A pergunta que não se cala, Carlos: pra que serve a literatura?
No plano pessoal, como no meu caso, para me deixar ligado ao mundo, à minha história, à minha gente. E mais: para exorcizar meus demônios, que são muitos. Acalmá-los, e fazer com que me ajudem a transformar o tormento, a angústia e, muitas vezes o sofrimento, em algo que possa chegar às outras pessoas na forma de um conto, um romance, uma crônica.
 O que você considera imprescindível de ser amplamente oferecido como política de promoção de leitura?
Tornar o livro mais acessível, mais barato. Atualmente existem muitos bons programas de incentivo à leitura, como o PNBE, por exemplo. Mas ainda é muito pouco, para um país tão imenso como o Brasil, onde uma maioria esmagadora da população, com toda a certeza, não tem acesso a este objeto misterioso, mágico e tão necessário, quase chama livro.
 O que você está lendo no momento?
O romance Liberdade, de Jonathan Franzem, e Fama e Anonimato, de Gay Talese, ambos livros de escritores norte-americanos.
Você acaba de lançar um romance, Poltrona 27, seu 13° livro. Há algum outro projeto literário em andamento?
Além de Poltrona 27, que saiu pela Editora Record, lancei também, pela Geração Editorial, A Mulher dos Sapatos Vermelhos, volume de crônicas escolhidas entre as que, todas as semanas – há mais de 10 anos –, venho publicando no Caderno de Cultura do Jornal Estado de Minas. O próximo projeto, como já disse, é lançar O Estilingue (histórias de um menino).
Carlos Herculano Lopes (Coluna, MG, 23 de outubro de 1956) vive em Belo Horizonte desde os 11 anos de idade. Formado em Comunicação Social, é repórter do jornal Estado de Minas. Com 13 livros publicados, recebeu vários dos principais prêmios da Literatura Brasileira e teve quatro de suas histórias adaptadas para cinema e televisão: “Estranhas Criaturas”, do livro Memórias da Sede (filme de Aaron Feldman, 1980), Sombras de Julho (minissérie de Marco Altberg para a TV Cultura de São Paulo e filme, 1995), “Um Brilho no Escuro”, de Coração aos Pulos (minissérie de Breno Milagres para a TV Minas, 2004) e O Vestido, romance baseado no poema “Caso do Vestido”, de Carlos Drummond de Andrade (filme de Paulo Thiago, 2004).
 Quer um pouco mais de prosa com Carlos Herculano Lopes? Assista ao vídeo!
Equipe responsável: Instituto Ecofuturo
Entrevista e estabelecimento de texto: Reni Adriano

 

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