11 mar

Transformação pelo engajamento

Por Marcela Porto*, conselheira do Instituto Ecofuturo.

A implementação de um projeto social, seja ele voltado à educação, cultura, conservação ambiental ou a qualquer outra área, inclui aspectos estratégicos. Nesse processo, um dos eixos principais para o sucesso e a continuidade da iniciativa é o envolvimento da comunidade. Muitas organizações acreditam que envolver a comunidade se resume apenas em realizar eventos e, isoladamente, receber alguns inputs locais. Porém, tão fundamental quanto a participação é uma etapa anterior: a análise do território onde a iniciativa será desenvolvida e as interações estabelecidas com ele.

Essa análise mais ampla, da paisagem como um todo, busca contemplar a identificação e o reconhecimento não apenas de dados demográficos, mas sobretudo de aspectos sociais: quais são os vínculos daquela comunidade com o local e entre as próprias pessoas? Qual história essa população conhece e qual ajudaram a construir? Quais as conexões emocionais que existem? Mais do que conhecer, é preciso respeitar, valorizar, fazer perguntas sobre esses aspectos, e genuinamente reconhecer suas especificidades.

Essa etapa antecede e fortalece, portanto, a participação da comunidade. Quando os cidadãos se engajam, o potencial de transformação social da iniciativa se toma ainda mais evidente, e isso pode contribuir para que seus resultados sejam mais duradouros. A comunidade deve ser vista como o ponto central dos projetos, de modo que a prioridade seja que esses cidadãos tenham suas necessidades e expectativas atendidas e possam, inclusive, desempenhar um papel atuante durante as fases de consolidação dos projetos.

De acordo com a International Organization for Standardization (ISO) 26000, norma internacional de Responsabilidade Social, há sete diretrizes para que as organizações possam manter uma conduta sustentável. Dentre elas, “a identificação e o engajamento das partes interessadas” e “o envolvimento e desenvolvimento de comunidades”, tópicos que destacam a relevância de se compreender como a comunidade será afetada pelo projeto e de que forma é possível mobilizá-la. Mas, na prática, o que seria esse engajamento e por que a comunidade é fundamental para a perpetuação de programas desse tipo? O projeto Biblioteca Comunitária Ecofuturo é um bom exemplo para ilustrar essa relação.

Desde 1999, o Instituto Ecofuturo, em parceria com o poder público, iniciativa privada e comunidade local, trabalha na implantação de bibliotecas em escolas públicas, abertas à comunidade, e no incentivo à leitura. O espaço, que é construído ou reformado para abrigar a nova biblioteca, recebe um acervo com 1.000 livros novos de literatura, além de equipamentos eletrônicos e mobiliário. Atualmente, são mais de 100 Bibliotecas Comunitárias Ecofuturo instaladas em 12 estados do Brasil, com média de 660 mil atendimentos por ano.

Ao ser definido o município onde será implantada a biblioteca, é executado um diagnóstico de grande importância, que permite a ampliação do olhar sobre a cidade que receberá o projeto. Consideramos não apenas os dados demográficos, como mencionei anteriormente, mas também aquilo que é vivo e afetivo, ou seja, as interações humanas existentes naquele território e como elas contribuem para o formato atual do espaço. Essa análise ajuda a entender de que maneira as pessoas, ao longo do tempo, deixaram suas impressões sobre aquela cidade e quais vínculos humanos e afetivos se formaram. Com a implantação do projeto, pretendemos restaurar esses vínculos e possibilitar que os indivíduos se sintam mais conectados com a sua comunidade, aumentando a sensação de pertencimento, tão necessária para a mobilização e a luta por melhorias no município.

Mapeamos também iniciativas culturais e de promoção de leitura já existentes na região, a fim de integrá-las de alguma forma ao projeto, trocar conhecimento e inspirar outras tantas boas ações e aqui, vale um parêntese: em todos os nossos processos de implantação de bibliotecas comunitárias, por mais remotos que tenham sido, sempre encontramos alguma iniciativa prévia relacionada à formação leitora na comunidade. Já vimos de quase tudo, desde livros na praça, rodas de leitura, “bike-livros” “jegue-livros” e por aí vai…

Retomando o processo, a conexão com as demandas locais não se encerra por aí. Concluída a etapa de articulação para assinatura de um acordo de cooperação com a Prefeitura do município que receberá a biblioteca e do apoio das instituições privadas primeiro passo para dar início à implantação -, a comunidade passa a ser o eixo mais importante, norteando nossas ações.

Para começar, organizamos uma mobilização dos moradores do entorno da escola para apresentar o projeto e para que escolham representantes que acompanharão as etapas de implantação mais de perto, estimulando que todos façam parte dos momentos de decisão e enxerguem a biblioteca como uma construção coletiva. Envolvemos as pessoas posteriormente, por exemplo, em sugestões para o mobiliário que é comprado em fornecedores locais -, na escolha do homenageado que dará nome à biblioteca e no processo de composição de parte do acervo.

Cerca de 70% dos livros adquiridos pelo Ecofuturo e doados para a biblioteca são selecionados por especialistas da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), enquanto os outros 30% são escolhidos conforme os interesses da comunidade. Apresentar títulos alinhados aos gostos e necessidades da população local aumenta as chances de aproximação das pessoas com o espaço.

Outra fase da implantação é a formação de aproximadamente 40 educadores e moradores da comunidade local em cursos de Auxiliar de Biblioteca e Promotor de Leitura, e em uma oficina de Educação Ambiental, que visa valorizar o ambiente natural também como espaço educador. Dois dos participantes serão funcionários da nova biblioteca; os demais se tornam multiplicadores da leitura e muitas vezes contribuem com o desenvolvimento de novas iniciativas na região.

Essas ações buscam, sobretudo, estimular a criação de vínculos afetivos da comunidade com a biblioteca comunitária. Muitas vezes, a biblioteca é o único equipamento cultural da cidade, o que a torna uma referência e até um ponto de encontro. Aquele espaço passa a ser mais do que um acervo físico de livros (e de muito conhecimento, claro!) e adquire outras tantas potencialidades: é lá que a comunidade pode descobrir novas vocações profissionais, por exemplo há casos de jovens que, a partir do curso de Auxiliar de Biblioteca, decidiram que gostariam de cursar Biblioteconomia. É também na biblioteca que os moradores aprendem maneiras de dar continuidade à gestão do local, a se empoderarem e se mobilizarem para, juntos, reivindicarem outras demandas de interesse comum ao poder público, além de várias outras possibilidades de encontros e descobertas.

Outro ponto que merece atenção é a comunicação contínua com o público-alvo, aspecto primordial, como indica o guia Project Management Body ofKnowledge (PMBOK), publicação que é referência para gerenciamento de projetos. Com a intenção de estimular esse processo e reconhecer o trabalho desenvolvido nas bibliotecas, realiza-se o Prêmio Ecofuturo de Bibliotecas a cada dois anos. As bibliotecas da rede podem se inscrever e compartilhar as práticas de leitura que promoveram ao longo do ano. Os relatos recebidos demonstram o quanto uma comunidade engajada no uso permanente da biblioteca é capaz de criar e realizar atividades significativas. O interesse pela leitura é capaz de gerar outras ações que beneficiam cada vez mais pessoas. Um caso que ilustra isso ocorreu na cidade de Agudos, no estado de São Paulo: as crianças de uma escola, em uma atividade proposta pela equipe da biblioteca comunitária do município, leram para idosos de um abrigo próximo ao local, que ficaram encantados com a visita.

É válido mencionar também que os impactos das bibliotecas comunitárias podem chegar ao âmbito educacional, influenciando o desempenho escolar de jovens e crianças. Segundo pesquisa de impactos desenvolvida pela consultoria METAS Sociais, os municípios que receberam bibliotecas da rede do Ecofuturo apresentaram melhora nos índices educacionais, como aumento médio de 7,8% no índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no Ensino Fundamental II, em comparação com cidades de mesmo porte, mas que não têm bibliotecas do projeto. O estudo apontou também uma elevação na taxa de aprovação, além de verificar uma relação positiva entre a presença das bibliotecas e uma maior participação das famílias na vida escolar dos estudantes.

Assim, a lição aprendida nessa caminhada, e que esperamos que possa servir de inspiração para outras iniciativas na área do investimento social privado, é que os projetos podem ir muito além de suas propostas iniciais e promover transformações na paisagem cultural, social e ambiental de uma comunidade. Observar essa mudança acontecendo na sociedade nos certifica que os vínculos criados a partir da implantação dos projetos são essenciais para que as iniciativas sejam efetivas e sustentáveis. Ao oportunizar vivências e abrir caminhos para novas perspectivas e novos sonhos, empoderamos os cidadãos e deixamos como legado um modelo de articulação que pode ser replicado, aperfeiçoado e utilizado como ferramenta para outras conquistas importantes para a comunidade.

*Artigo publicado na edição 84 da revista Filantropia, de março/2019.

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