06 ago

Viver para contar: de férias na Montanha Mágica

Enredo um

Uma criança nascida e criada na metrópole viaja para um sítio pela primeira vez, nas férias. Fica deslumbrada com tudo o que vê pelo caminho, principalmente com os animais. Principalmente com a vaca. A mãe da criança, querendo introduzir o filho em uma relação respeitosa e reverencial com a natureza, propõe agradecerem à vaca pelas maravilhas que nos oferece – ou que tomamos a ela, quase sempre, sem pedir licença. Sugere, assim, que agradeçam pelo leite quentinho de todas as manhãs. A criança, então, fica perplexa: nunca tinha imaginado que aquele leite comprado em caixinha no supermercado pudesse sair das tetas – dos úberes! – daquele bicho fantástico. Embora embevecida pela beleza da vaca, não pode suportar certa dose de náusea que lhe ocorre ao descobrir que grande parte da sua nutrição provém desse bicho que, digamos, exótico assim, é “animal demais” para as nossas consciências demasiado urbanizadas.

Enredo dois

Quando descobre que a vaca é a fonte do leite de todas as manhãs, outra criança quer saber de qual das tetas – dos úberes! – daquele ente extraordinário sai o leite com chocolate!

Enredo três

Ao descobrir a origem do leite de todas as manhãs, uma outra criança resolve questionar por que as vacas adultas não bebem leite da própria espécie, enquanto nós, seres humanos crescidos e que não tomamos mais leite humano, continuamos consumindo o que a princípio é só para os bezerros das vacas…

O desfecho dos enredos esboçados acima pode ter inúmeros desdobramentos, tanto quanto são inúmeras as experiências despertadas. E sejam como forem essas experiências, uma coisa é inegável: elas se impõem como experiência, exigem e precisam ser narradas. Narradas por quem as viveu – por quem se modificou ao tê-las vivenciado.

Não será assim que as crianças e os jovens voltam das férias, professor – de alguma forma, modificados? Não é assim que professores e professoras também retornam para a sala de aula? Seja onde for que tenhamos ido, a volta é sempre uma enorme sede de contar.

Contando é que elaboramos o que vivemos, criamos sentidos novos, reatualizamos vínculos, nos damos a conhecer (ou a descobrir) no ato criativo essencial de nos inventarmos na potência das palavras. Só uma roda de conversa, só um espaço do dizer e da escuta pode acolher essa necessidade primária de nos criarmos e recriarmos incessantemente pela força da linguagem. Sempre que acolhidos num espaço de ouvir e de narrar, nosso ser se manifesta – e de uma maneira que nós mesmos nem imaginávamos até o momento em que começamos a falar. Para lembrar o escritor Gabriel García Márquez: é um viver para contar.

E se algumas viagens, nas férias rápidas do meio do ano, não foram mais do que um breve passeio, também não foram menos que isso, e é o quanto basta para se ter o que narrar. Porque a narrativa que nos modifica não brota exatamente do tempo, mas do espaço. É o que nos garante o escritor alemão Thomas Mann já nas primeiras páginas do romance A Montanha Mágica:

“O espaço que, girando e fugindo, se roja de permeio entre ele e seu lugar de origem, revela forças que geralmente se julgam privilégio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo (…) Dizem que o tempo é como o rio Lete; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido”.

Cada um, em cada momento da vida, tem a sua Montanha Mágica. Às vezes é um torrãozinho de terra debaixo de uma árvore, outras vezes é uma imagem vista pela primeira vez num parque já conhecido, pode ser um pedacinho de rio, um encontro inesperado no mar… Nem sempre o que nos modifica é da ordem do extraordinário. Aliás, se viver já é extraordinário, nada do que nos acontece pode ser banal.

A vida de ninguém é banal. Mesmo quando, aparentemente, não acontece nada. Garante o Guimarães Rosa: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. O próprio Thomas Mann, na sua Montanha Mágica, precisou de mil páginas para contar a história desse personagem que nada tem de extraordinário – muito pelo contrário: é apenas um “burguesote”, que o narrador chega a chamar de “medíocre” e de “filho enfermiço da vida”. Então, por que mil páginas para narrar uma vida tão “comum”? O narrador explica: “[Porque] há histórias que não acontecem a qualquer um”. E arremeta: “[Porque] esta é a sua história”.

Qual é a sua história, leitor? Quais as histórias de cada um dos nossos alunos? Para além de qualquer juízo sobre uma história que nos é generosamente narrada, nos cabe considerar, antes de tudo, apenas isto: “Esta é a sua história”.

E nisso não há nada de menos. Porque, além disso, não há mais.

*      *      *

 

(Tradução dos trechos de A Montanha Mágica: Herbert Caro)

Imagem: Diários de Motocicleta, de Walter Salles

 

 

 

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