12 jun

Nós contra o Batman

Coisa bem difícil é falar do assunto dessa semana. Ética. Um dos temas mais esgotados para se tratar nos dias de hoje. Todo mundo acha que tem, todo mundo acha que sabe o que é. Dá medo ser apontado como aquele que não tem. Não temos aqui a pretensão de encompridar a lista de definições e abrangências do termo, pois o espaço é limitado, ainda menor que qualquer limitada pretensão de esgotar o tema. Usualmente se usa o termo com significado reduzido, comprimido por nossos conhecimentos parciais, ou enfaixado com as ataduras da exigência do momento. Ética como similar a honestidade. Ou simplesmente, boa conduta. ‘Vergonha na cara’, pra usar um termo muito brasileiro. Ou como sinônimo de moral.

Sempre se vê gente clamando pela volta das aulas de Educação Moral e Cívica, como se já tivéssemos sido uma sociedade melhor, no passado. Como se fôssemos uma sociedade em degeneração, perdendo valores que faziam sentido para nossos avós. Essa premissa pode desandar para uma série de generalidades indesejáveis. É compreensível que uma certa nostalgia por uma sociedade menos complexa possa ter espaço no imaginário coletivo, pois a análise do momento passado sempre se reveste de uma aura de amortecimento, como se todos os aspectos ruins fossem apagados, e somente nos lembrássemos dos bons aspectos. A defesa desse sentimento é algo difícil de sustentar. É fácil lembrar da liberdade da criança urbana poder andar de bicicleta no bairro em um passado recente, mas é igualmente fácil esquecer do trabalho infantil rural que era regra no país no mesmo período. A sociedade menos complexa de quem muita gente sente falta, na verdade era uma organização simplificada de sociedade, desigual e eventualmente perversa, onde direitos fundamentais ainda eram ignorados, diversidades eram obrigatoriamente aplainadas, e uma série de valores muito rígidos regia as relações na cidade, e quem não se enquadrasse, estava fora do eixo. O senso comum geria as decisões. Como ainda rege, temos que concordar. Melhoramos, mas falta muito.

No futuro, se tivermos sorte e estivermos na direção certa, fazendo o melhor possível neste exato momento, será este também o comentário sobre os tempos atuais, pois precisamos sempre avançar. ‘Mejor que ayer, peor que mañana’, diz mais ou menos assim o ditado espanhol. Estamos em constante evolução, em todos os aspectos. Há vinte anos, o cuidado com o meio ambiente inexistia. Há cinqüenta anos, grupos hoje considerados vulneráveis a assédio moral sofriam real risco de vida. Grupos que correm risco hoje serão livres no futuro. Avançamos muito, não só em nossas conquistas científicas e ampliação do conhecimento humano, mas estamos caminhando também na disponibilização deste conhecimento para benefício e conforto de um maior número de pessoas. Conhecimento gerando bem-estar. Educação gerando respeito. Ciência trazendo felicidade. Estes deveriam ser objetivos comuns. E podemos considerar que já são, pois ao menos o desconforto causado pela contrariedade a estes conceitos já é evidente. Mesmo quem não faz nada de concreto para uma melhora da ética como sintoma da evolução coletiva, sabe que é errado ser contra.

É possível ser razoavelmente otimista neste momento, ainda que as relações de conflito estejam ficando cada vez mais explícitas. Isso ocorre porque estamos atravessando tempos de distensão muito rápida, e reações são inevitáveis. Estamos aprendendo e ensinando continuamente.

Em vez de uma educação ‘Moral e Cívica’, antes tivéssemos sido todos educados com aulas de ‘Ética e Cidadania’. O conceito de Moral está associado a julgamento, e carrega uma carga pesada de reprovação a comportamentos variados, juntando toda e qualquer diversidade em um mesmo bolo. Um bolo pesado, sem fermento, e que a moral nos diz para não cortar. ‘Cívica’, por sua vez, seria muito bem substituída por ‘Cidadania’, termo de mesma origem, pois cidade e civitas eventualmente se confundem, mas que possui caráter mais leve, mais afeito à participação nas coisas da cidade. Não só da cidade, mas do país, pois este de cidades é formado, mas sem o caráter ufanista, do patriotismo que adora seu país independente do fato dele estar bombardeando aldeias do outro lado do planeta neste exato momento. Há coisas indefensáveis, e o patriotismo não permite relativização.

Muita gente usa ‘Ética’ como um super-poder que tudo resolveria, mudando a realidade, libertando os oprimidos, realinhando as relações humanas e ainda, de quebra, salvando o planeta. Algo parecido com o Batman. A ética como uma vestimenta de pureza, uma capa de herói, um cinto de mil-e-uma utilidades que nos protegeria dos erros (e também do julgamento) do mundo. Mas ética, etimologicamente, vem do grego ethos, e significa, em resumo, costume. A ética seria, então, o conjunto de hábitos e usos que caracterizam um grupo, uma ideologia, um país. Ora, então o que é preciso mudar?
Não é a ética que vai mudar nossos hábitos. É a mudança dos nossos hábitos e costumes que vai mudando, aos poucos, a ética do país, e construindo esse enorme edifício que é a nossa sociedade. A transformação na nossa atitude cotidiana, no modo como nos relacionamos, como trabalhamos, como produzimos, como consumimos. O modo como pensamos, planejamos, agimos e avaliamos o que foi feito. O modo como tratamos dos nossos filhos, dos filhos alheios, dos filhos que nem têm pais. O modo como compramos, como vendemos, como doamos, como respeitamos o alheio. O modo como tratamos os recursos naturais, o dinheiro, o trabalho e os sonhos. O modo como somos. O inimigo a combater somos nós mesmos, e até o Batman sabe disso. Ele combate os vilões de Gotham City, mas sabe que o mal está também dentro dele.

A corrupção parece ser outro termo recorrente, sempre que tratamos de ética. Dada a obsessão recorrente, é um termo a ser evitado, pois acaba sendo princípio e fim em si mesmo. É outro termo esvaziado de significado pela vulgarização do uso, quase uma confirmação simbólica de sua existência pelo elogio da repetição. Somos corruptos e corruptores em pequenas ações cotidianas, que não vale a pena citar, pois não é novidade: cada um sabe dos seus grandes e pequenos deslizes, ainda que finja não saber. Impostos, trânsito, dificuldades burocráticas cotidianas, muito pouco já é suficiente para despertar o corruptor adormecido em cada um de nós.

Combater a corrupção é como cortar as unhas: se cada um cortar as suas, todos teremos unhas cortadas. Não adianta apontar o dedo, se o dedo não estiver limpo. E nossos dedos não estão limpos todo o tempo. A possibilidade de punição é o que motiva a virtude? A virtude não deve ser algo que se veste, como uma fantasia ajustada ao corpo; a virtude é um suor que deve emanar da pele, e perfumar o ar. Deve ser um sentimento que se relaciona com todos os nossos atos, mas sem apresentar-se ostensivamente. Impossível reduzir a ética a um manual de conduta. Não existe tal coisa, uma lista de procedimentos corretos para cada atividade humana, mas, insistimos tentando explicar.

Ética é decência? Dificilmente. O sentido é novamente obscurecido por julgamentos morais, e essa, como sabemos, não é a verdadeira dimensão da questão. Pessoas muito rigorosas do ponto de vista da moral podem ser completamente ignorantes em termos de ética. Ética é honestidade? Pode ser, mas não é só isso. Mas essa palavra nos parece mais resistente a uma segunda análise, algo que não se curva a tortuosas alterações de sentido.
Que se recupere então o sentido desta palavra, e se restitua a preferência pela honestidade, esse incômodo em fazer o que é errado, não porque seja uma regra, mas porque ser honesto é o melhor a ser feito, porque nossos atos têm efeitos imediatos em uma infinidade de outros eventos. Porque o mau hábito se propaga veloz, contaminando a beleza do cotidiano, sufocando as flores, impedindo que brotem, e deixa em seu caminho uma terra arrasada. Porque cada gesto desonesto, ainda que para a concretização de objetivos eventualmente nobres, ou necessários (e quem julga esse critério?) alimenta uma ética deformada. Porque temos urgências a resolver, mas temos responsabilidades com o futuro. Porque ainda existem os não-contemplados, os que aguardam a vez, os que podem não ter tempo de esperar.

Porque não se paga a vida com ouro, porque não se compra afeto com riqueza, porque não se prolonga a vida com prestígio, porque o poder se esgota em si mesmo, e o fim de tudo chega. Porque até é possível comprar sorrisos com dinheiro, mas este será uma máscara grudada sobre uma face que se esconde, e o sorriso não há mais, o sorriso será somente um cenário, um vazio aberto no rosto, e o sorriso de verdade foi morar em outro lugar.

Autor: Alessandro Sbampato

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