09 nov

Texto literário é paradidático?

Lucila Pastorello – SBS E-talks

Para iniciar nossa conversa gostaria de chamar a atenção para um movimento que, em minha opinião, está na base do questionamento anunciado no título: aescolarização.

Trata-se de um movimento que está ligado ao processo de universalização da educação e do fortalecimento da escola como instituição responsável pela transmissão da cultura. Qualquer observador atento pode constatar que a cada dia delegamos mais funções educativas à escola, de modo que a família e a sociedade acabam assumindo um papel secundário, marginal no processo de formação de crianças e jovens.

Já não basta ocupar-se da apropriação de conhecimentos das disciplinas tradicionais das ciências da natureza, das linguagens, das ciências humanas e suas tecnologias; a escola atual deve cuidar integralmente da educação ética, moral, artística, corporal, da civilidade. Escolariza-se assim a própria existência cultural.

Na escola é possível aprender a cozinhar, a costurar, a trabalhar com madeira, a frequentar espetáculos, exposições, a caminhar pelas ruas do bairro, a viajar; aprende-se as regras de trânsito, condutas sociais, línguas estrangeiras, diversos esportes e como se comportar a mesa; as crianças aprendem a cuidar do meio ambiente e inclusive aprendem a falar e a brincar (!). Algumas crianças fazem refeições na escola, tomam banho, aprendem sobre higiene e cuidados básicos. Todo um conjunto de práticas, que durante muito tempo foram construída na família nuclear e estendida, na vizinhança, na sociedade, está atualmente delegado à instituição escolar, em função das necessidades impostas pelo modo de vida que se estabelece, principalmente nos grandes centros urbanos.

A própria palavra “educação” em sua polissemia, faz pensar. Minha filha, Mariana, aos sete anos de idade, me questionou quando eu lhe explicava que faria um curso na Faculdade de Educação: “mamãe, acho que você é uma pessoa tão educada… não precisa fazer curso de educação”.

Ora, não se trata aqui de criticar ou levantar bandeiras contra a escolarização, mas identificar este processo e cuidar de seus excessos, procurando manter também a responsabilidade da educação além da escola. É então neste contexto que convido vocês a discutir sobre a escolarização da literatura, a partir do questionamento sobre a categorização do texto literário como paradidático.

Sobre a escolarização da leitura literária, Magda Soares (SOARES, 2003) faz observação útil para nossa discussão: a escolarização da literatura é inevitável; contudo é necessário discutir as formas como ela se desenvolve, ou seja, como a escola se apropria dos textos literários e como oferece a literatura.

O que tenho observado, de uma maneira bastante geral, é que existem diferentes lugares da literatura na escola.

Na educação infantil, a literatura tem uma história mais recente. A partir dos movimentos de incentivo à leitura – organizados por instâncias governamentais ou não- e do incremento qualitativo e quantitativo da produção de livros dirigidos às crianças, o livro literário passou a fazer parte do material cultural ofertado às crianças, muitas vezes pela voz do professor. Este contato inicial com a leitura, com os livros e com a literatura normalmente é agradável: um afago, um momento de diversão. Neste contexto a literatura é gozada em sua essência:a apreciação. Mesmo que, em algumas atividades, já na educação infantil, a escolarização se faça presente em atividades pedagogizantes que envolvem tentativas de transformar a literatura em objeto útil para o aprendizado de cores, números etc., parece que na maioria das vezes o poder das narrativas, da arte com as palavras, do jogo simbólico, linguístico e imagético é evidenciado e conquista os pequenos. Neste contexto é fácil gostar dos livros.

Com o caminhar da escolarização as coisas mudam de figura. No ensino fundamental, os textos literários aparecem essencialmente sob dois formatos: trechos e citações em livros didáticos e apostilas (especialmente de Língua Portuguesa) e leituras obrigatórias cujas interpretações serão avaliadas. Bem, aqui já fica mais difícil gostar dos livros, pois eles agora fazem parte do estudo, da obrigação e de todo o jogo que a crianças dessa idade está construindo em relação a seu posicionamento subjetivo frente à escola, ao estudo, à apropriação cultural.

O problema não é que se façam cobranças a partir da leitura literária. A grande questão, que se repete até o ensino médio, é que apenas se façam cobrança às crianças e aos jovens leitores. Na maioria das escolas não se oferece a literatura em sua essência: oportunidade conhecimento sobre as culturas, sobre processos expressivos e simbolização, sobre a linguagem, sobre a experiência leitora em sua natureza: criadora de sentidos. Não há momento para apreciação estética, para opiniões e interpretações dissonantes, para a subjetividade. E sem sujeito não há desejo.

A literatura tomada como livro paradidático, como auxiliar da transmissão de conteúdos pedagógicos não estimula o hábito leitor, ao reduzir a arte das palavras a uma ferramenta de ensino, normatizante. Tratar literatura como livro para didático é cortar lhe as asas e limitar as crianças e jovens ao discurso controlado. A liberdade que se experimenta como leitor, uma das alegrias da leitura, fica assim ameaçada.

Acredito que a literatura, evidentemente, tem seu lugar na escola, mas não como livro paradidático.

E você, meu leitor, meu ouvinte, o que acha?

Para saber mais:

SOARES, M. A escolarização da literatura infantil e juvenil. EVANGELISTA, A.A.M.; BRANDÃO, M.B. MACHADO, Z. V. (Org.) A escolarização da Leitura Literária- o jogo do livro infantil. Belo horizonte: Autêntica, 2003.

PERROTI, E. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo, Summus, 1999.

INSTITUTO ECOFUTURO (org.) Pra que serve a literatura? Disponível em http://www.dianacionaldaleitura.com.br/2010/livreto/

 

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