16 ago

A oralidade que faz escrever

Rubem Barros
 – Revista Educação

Coordenador do projeto “Ensinando a leitura a partir de diagnósticos orais”, cuja primeira de duas fases se encerrou neste ano, pesquisando as dificuldades de apreensão dos universos da leitura e da escrita entre 43 alunos de uma escola pública, Belintane defende o uso prévio da oralidade como forma de melhorar esse processo. Leia, a seguir, a entrevista concedida ao editor Rubem Barros, em que o pesquisador relata as primeiras conclusões do trabalho.A obstinação com que os educadores se fixam na escrita, para resolver as questões relativas à alfabetização, é um erro estratégico para o processo, que pode ter efeito contrário sobre os alunos, principalmente entre aqueles que provêm de ambientes pouco afeitos à leitura. Quem defende a tese é Claudemir Belintane, professor de Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa da Faculdade de Educação da USP.

Sua pesquisa parte do pressuposto de que existe um conjunto de atividades ligadas à oralidade que é de suma importância para o domínio posterior da leitura. Que elementos levaram a essa hipótese? Havia algum trabalho anterior?
O ponto de partida é a própria docência. Trabalhei muito com crianças, fui coordenador de escola, alfabetizei. Tinha essa observação cotidiana, não sistemática. Com a pesquisa, sistematizamos e quantificamos, embora o trabalho seja mais qualitativo que quantitativo. Como fazemos uma escuta detalhada, é impossível trabalhar com um grande número de alunos.

Os resultados obtidos podem ser projetados para um universo maior?
Sim, pois estamos trabalhando numa situação real de sala de aula, com um conjunto de alunos escolhidos pelos professores, vistos por eles como crianças que tiveram dificuldades de alfabetização até a 4ª série, com três ou quatro anos de escolarização. Não escolhemos uma escola da periferia ou de classe média, mas uma que recebe um público diversificado, tanto de crianças desfavorecidas como crianças de classe média baixa. Há outra experiência, nos dois últimos anos, numa ONG que trabalha com crianças de favela. Ela nos deu dados importantes, que funcionaram como pressupostos para a pesquisa, alimentando a hipótese.

O diagnóstico inicial mostra que os alunos com dificuldades de se alfabetizar criam estratégias de resistência ao aprendizado, para evitar uma angústia do processo, de errar e acertar. Essa angústia é fruto de uma pressão social excessiva?
É fruto desse desencontro que há entre como a educação está preparada para receber essa criança e certo desconhecimento não só do professor, mas do próprio campo educacional em relação à cultura do aluno. A criança resiste ou se afasta da escrita porque a oralidade, a fala, é mais corporal, mais direta, mais fascinante e fácil de manipular. Quando entra direto na escrita, tem suas dificuldades. Essa resistência do aluno se baseia no acúmulo dessa dificuldade. Entra na 1ª série e não se alfabetiza. Vai para a 2ª, já é visto de uma forma diferente, então a resistência tende a aumentar. Quando chega à 4ª série, está com a guarda absolutamente fechada. Chega a ponto de jogar os livros no chão ou dizer claramente que não quer aprender a ler.

É nessa hora que o estudante quer sair da escola, evadir-se?
O interessante é que a escola, inconscientemente, cria mecanismos para ele ficar lá mesmo não sabendo ler. Por exemplo, eles assumem a cópia da lousa para se afirmar como sujeito-aluno. Copiar da lousa é a atividade preferida dos alunos. É um momento de silêncio em sala de aula. É incrível, aceitam. É o ponto de maior pacto com o professor.

É conveniente para os dois lados?
O professor passa muita lição na lousa, eles copiam e é o momento que se sentem alunos. Em aulas expositivas ou analíticas, de raciocínio ou de leitura, eles se angustiam com facilidade e chegam a dizer “para com isso e começa a dar aula. A dar lição”. Dar lição é fazê-los copiar a lousa. Esse ajeitamento de que eles participam pela cópia, de se sentir aluno pelo material que preenchem, dá uma certa acomodação e ajuda a ficar na escola. Qualquer estratégia para mexer com eles tem de levar isso em conta. Chegamos a trabalhar oralidade e depois damos um tempo para copiarem o texto que trabalhamos na oralidade. Mas instrumentalizamos a cópia, fazemos bom uso dela. Caso contrário, a resistência fica maior ainda.

Isso demonstra que existe o desejo de ser aluno.
Existe. O problema é o confronto com a escrita e com a leitura, às vezes muito abrupto. O governo criou esse fundamental de nove anos, aumentou um ano e pôs a criança entre 5 e 6 anos na escola, exatamente para acabar com o improviso da educação infantil e trazer um ensino mais sistematizado, ligado à leitura, à escrita e à oralidade, nessa 1ª série. Só que esse impacto continua ocorrendo sob o aluno. Porque ele é recebido como se fosse a criança da 1ª série dos anos anteriores, como se tivesse 7 anos. Boa parte dessas crianças vem das escolas infantis com repertório muito pequeno de textos orais. Isso faz uma diferença enorme.

Se considerarmos que muitos desses alunos vêm de famílias não letradas, isso não aumenta a importância da educação infantil e de que a sua oferta seja maior?
Com certeza. Nossa educação infantil, porém, ainda é muito desorganizada. Sabe pouco sobre a infância e aproveita pouco as pesquisas sobre a infância. Por exemplo: sabemos que uma criança de 1 ano e sete ou oito meses é capaz de fazer relações intertextuais impressionantes. Uma criança estava batendo com uma colher de pau numa tigela e a mãe disse: Filha, você vai quebrar a tigela. Ela respondeu: Canta o pato, mãe! “O pato” é a música do Vinicius que fala: o pato pateta quebrou a tigela. Ela trouxe a música inteira de uma expressão, é uma relação intertextual sofisticada. É abrir uma espécie de hipertexto de uma palavra para um texto completo, que tem uma importância fundamental. Sobretudo quando é mobilizado e agilizado. A criança pode saltar de um texto para o outro a partir de uma conversa cotidiana. Por trás dessa fala comunicativa podem existir na memória muitos textos para serem relacionados. Por exemplo: quando você fala em sapo com uma criança, ele lembra da cantiga “o sapo não lava o pé”. Nessa mobilização, já existem elementos fundamentais da leitura.

No processo de alfabetização, confundem-se leitura e escrita. Aprender a ler e a escrever não são processos diferentes?
Em geral, há uma grande confusão. A escrita acaba vindo primeiro. Forçam a criança a escrever desde muito cedo. Treinam uma escrita. Querem que aprenda a leitura pela escrita. A leitura e a oralidade têm de vir na frente. São duas possibilidades tanto de ler o mundo como de ler imagens e diversas linguagens. E também de escutar o mundo, os diversos sons. A escrita se dinamiza a partir desses potenciais. Não pode ser o carro-chefe da leitura. Pode apoiá-la, mas o primeiro plano está na leitura e na oralidade. Mesmo no construtivismo, invertem tudo. Quase todas as avaliações e os diagnósticos feitos pelos construtivistas são baseados na escrita, no ditado, na cópia. Raramente você tem, como fizemos nesse projeto, diagnóstico de oralidade. Quantos textos a criança tem na cabeça? Como são esses textos? Traz um texto mais complex. Consegue narrar? Tivemos casos de alunos que, mesmo apoiados em pranchas com imagens, não conseguiam fazer a narrativa dos três porquinhos. Mesmo que aprenda a ler, mesmo que aprenda o código da escrita, vai ser um leitor que subvocaliza, que lê de forma lenta, que faz uma leitura sem sentido. Isso ocorreu com 58% dos alunos da 4ª série.

A educação infantil inverte prioridades ao querer fazer o aluno grafar em vez de usar a memória oral?
O instrumental oral tem muita relação com os livros. Tem a contação de história em voz alta. A professora pode contar uma história de diversas maneiras. Pode começar contando as partes mais interessantes, voltar a ler, parar de ler, voltar a contar. Pode dividir a história em partes para que os alunos as percebam. Cada um narra um pedaço. No caso dos três porquinhos, por exemplo, cada um pode narrar a chegada do lobo a uma casa. É importante ter essa ideia de coerência e progressão do texto. Boa parte das crianças que chega à escola com 5 ou 6 anos faz uma narrativa simples e salta direto para seu motivo principal: o lobo já vai assoprar a terceira casa sem ter passado pelas outras. O repertório é muito pequeno, inclusive dos professores. Parece restrito aos textos mais conhecidos e que os alunos aprendem não pela oralidade, mas pelo cinema, pelos DVDs, como “A Branca de Neve”, “A Cinderela”. É o mundo Disney.

Quais relações propiciadas pela oralidade podem ser úteis mais tarde no domínio da leitura e da escrita?
A oralidade é esse conjunto de textos que a tradição vem peneirando ao longo do tempo e tornando cada vez mais bonitos e interessantes. A narrativa tem uma contribuição fundamental, trazendo essa progressão textual, vocabulário, o volume de texto manejado na memória. A narrativa é um grande estruturador da memória, não só na infância como na própria tradição das culturas. Os textos poéticos são o inverso. As brincadeiras todas que as crianças fazem são textos poéticos, como o trava-língua, que é musical, tem o efeito da paronomásia, efeitos de estilo. As parlendas trazem o non sense como trabalho com a beleza do significante, e também destacam a palavra, escandindo-a, isolando fragmentos. Isso impede que o aluno chegue à 5ª série com frases que conhecemos como holófrases, o entendimento de que uma frase inteira funciona como uma palavra. Por exemplo, “Tirissodaí”, ou “pegalá”. Pulando corda e brincando com a palavra, você está dividindo segmentos, fragmentos da palavra, o quefavorece a alfabetização. As crianças que aprendem cedo a falar a língua do revestrés [de trás para frente, invertendo as sílabas] não têm o menor problema com a sílaba.

Em que isso ajuda?
A linguagem do revestrés também serve para fazer diagnóstico, trabalhar com crianças que têm dificuldade de aprendizagem, sobretudo quando se usa a inversão de dissílabos. Quando se consegue isso – vroli, para livro; ou same, para mesa, é um passo enorme para a alfabetização, a sílaba está sendo trabalhada como um algorítimo. Então, cada texto da tradição oral tem uma função que, em geral, os professores não conhecem. E são funções da tradição oral, não da escrita. Se você pegar o livro que o governo paulista distribui para a 1ª série, encontrará muitas parlendas, cantigas, contação de história, mas são vistas como escrita. São lidas pelo professor, e não apresentadas como jogos. Acabam perdendo o lado performático, encantatório, de manejo da palavra.

Como seria o uso mais inteligente?
Instruir os professores para que primeiro apresentassem oralmente. Fiz um esquema para isso que começa pela performance, com uma adivinha, por exemplo, que traz o princípio da leitura. É um texto para ser interpretado: é preciso pegar as metáforas, as metonímias, as hipérboles, lidar com esse material. As crianças são diferentes dos adultos, que ficam esperando a resposta. Elas tentam adivinhar, interpretar. Quando você cria logo de cara a adivinha, já começa com a compreensão do texto pela oralidade. Tem de ser no oral, pois aí elas vão memorizar e fazer uma leitura interna. A mais conhecida, “cai em pé e corre deitado”, por exemplo, da chuva. Para o cair em pé, elas têm de ver a imagem da chuva; e para o correr deitado, precisam ver a enxurrada. Ao mesmo tempo, estão desfazendo o paradoxo que quase toda adivinha traz. Na sequência que criei, depois o professor pedirá a cada aluno que pesquise com os pais e familiares para trazer, de memória, uma adivinha, que será socializada com os outros;  num terceiro momento, pesquisa-se na biblioteca para saber se há livros de adivinha. Nessa etapa, coisas curiosas podem ser descobertas, como poetas que trabalharam a partir desse gênero. Um exemplo é o José Paulo Paes. Aí os próprios alunos fazem o seu livro com os exemplos que trouxeram. Depois, passam a inventar adivinhas para circular na escola. Só vira escrita depois. Segue o processo que aconteceu na sociedade. As sociedades orais brincavam com isso. A adivinha grega é anterior aos tempos de Homero, da escrita.

Nessa trajetória que o senhor descreve, há uma escuta mais acurada e uma atenção maior ao universo do aluno. Isso não nos leva à eterna questão da formação do professor, que deveria ser mais consistente?
O professor teria de buscar uma formação mais consistente, e os educadores e pesquisadores brasileiros têm de lidar mais com a escola real, com o aluno brasileiro e suas situações. Nossa pesquisa tenta montar um módulo de trabalho dentro da escola pública. No final da pesquisa, teremos condições de dizer aos governos “olha, se montarmos um módulo assim e um programa de formação de professores, poderemos dar passos importantes para melhorar os números que estão aí”. Esses números são renitentes, não baixam de jeito nenhum, porque não se mexe nas questões principais. É preciso escutar esse aluno ofendido, que permanece na escola sem saber ler, que se confronta com a escrita vindo de uma cultura oral. Ele até espera se dar bem, mas de cara ele é isolado, porque o mundo oral e o mundo da escrita vêm de contendas na história. Na sala de aula, também.

Até que ponto a forte presença dos meios de comunicação audiovisuais, principalmente a TV, e violência que inibe o convívio comunitário prejudicam o exercício da oralidade?
Boa parte da oralidade que as crianças trazem para a escola vem da televisão. É uma formadora de maneira passiva, pois não consegue lançar uma adivinha para a criança e esta responder. O que a escola pode fazer é esse outro lado da oralidade, performático. Fazer com que a oralidade presencial traga a criança para a leitura e para a escrita. O melhor caminho para isso é o de textos já memorizados. Ter textos na memória é fundamental para a leitura. E esses textos têm de ser colocados, para dinamizar, para aprender a extrair sentido da leitura. Toda essa conturbação, tanto nos meios de comunicação como no meio do aluno, estraga bastante sua entrada na escrita e, sobretudo, na cultura oral. A cultura oral das cidades grandes hoje está esfacelada, não tem mais o que tinha na tradição. Venho de uma família de analfabetos, só que de analfabetos brincantes, que contavam histórias, que brincavam com adivinhas, jogos de palavras. A escola da época, porém, não usava nem um pouco disso.

A memória era mais valorizada…
O cordel, por exemplo, que fica entre a oralidade e a escrita. Muitas pessoas que compravam o cordel na praça não sabiam ler. Ou alguém lia para os outros e ouvia-se um cantador lendo para os outros, memorizava-se boa parte, depois levava para casa. Muitos cegos vendedores de cordel não sabiam ler, mas simulavam a leitura porque tinham o texto na memória. Se voltarmos na história, na Antiguidade ou na Idade Média, os textos estavam mais na memória do que no papel. E mesmo o leitor contemporâneo joga com a memória que ele tem no momento da leitura. Quanto melhor a memória, melhor a intertextualidade, melhor a leitura.

Volta e meia ressurge o debate entre fônicos e construtivistas na alfabetização. Como a questão da oralidade se insere aí?
Em geral, criticamos os dois. O construtivismo muitas vezes tem um purismo de não lidar com os elementos menores, com a sílaba, com o fonema. Isso significa perder um recurso importante para se lidar e sistematizar. O método fônico sistematiza demais, independentemente do que a criança conhece, não há um diagnóstico oral que norteie a aprendizagem. Tem de sistematizar todas as famílias silábicas, o que pode ser feito desde que o aluno precise disso. Hoje, o pessoal de algumas delegacias de ensino chega a cassar o silabário em sala de aula. O pesquisador brasileiro tem de olhar para a realidade local, não tem de assimilar uma linha do exterior. O método fônico é uma linha norte-americana, forte nos Estados Unidos, vindo de uma tradição de silabação da língua inglesa. Existe concurso de soletrar, a língua pede isso. O português, em especial o do Brasil, não. Não falamos como os portugueses, não engolimos as vogais, nós as sonorizamos. Então, é interessante trabalhar com famílias silábicas quando necessário. Algumas delas costumam dar trabalho aos alunos, como aquelas em que o nome da letra é diferente da pronúncia, o “f”, o “l”. Aí, é importante sistematizar. Há maneiras criativas de fazer isso, como o trava-língua, por exemplo.

Qual a principal divergência com os fônicos?
O método fônico trabalha com a ideia de uma consciência fonológica. Trabalhamos com a ideia de uma inconsciência fonológica. Quando uma criança faz uma relação intertextual da expressão “quebrou a tigela” e isso traz o texto do pato, essa relação é totalmente inconsciente, não há tempo para a consciência. É algo que acontece dentro da língua pela força da língua, pela relação de metáfora, de metonímia que ocorre espontaneamente, uma coisa faz lembrar a outra por semelhança sonora ou de sentido. Quanto mais o aluno entrar por essa via na leitura, melhor. A leitura não é um processo muito consciente, não sabemos o que acontece com o leitor quando ele está lendo. Ele pode ter o domínio do código, da sílaba, mas as associações que ele faz nem ele sabe.

Quais as estratégias empregadas que foram mais eficazes?
A combinação, o arranjo com os textos da tradição oral, a partir da cultura do aluno. Esse princípio de pesquisar o que o aluno sabe, ter um diagnóstico preciso da sala é fundamental. Você pode perceber que uma parte da sala tem muita dificuldade com textos orais, que não tem textos na memória. Dá para fazer trabalhos interdisciplinares com educação física e outras disciplinas. A narrativa, por exemplo. Pode-se explorar a intertextualidade, fazer uma rede de memórias de narrativas. Trabalhamos “O pequeno polegar”, um texto que nunca aparece na escola, porque não faz parte da Disney. Esse texto dialoga com “João e o pé de feijão”, por motivos que se repetem. As estratégias de um aparecem no outro. “João e Maria” idem. Os três são lembrados de uma vez, quando mencionados. Outro recurso é o da informática, sobretudo na fase final. Os textos que trabalhamos na oralidade aparecem na tela, como jogos de leitura e escrita. Os alunos reconhecem imediatamente, às vezes por meio de um conjunto de palavras que pertence a uma determinada parlenda. O que queremos fazer no final é um material para o professor em que ele encontre formação e material para utilização em sala de aula. Se conseguirmos transformar isso em material impresso, teremos a possibilidade de fazer com que o professor tenha uma ambiência de formação, uma oficina de trabalho, em que pode lidar com o oral e o escrito.

 

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